50 years on, what has happened to the land? In addition to the profound political and social changes that the 25th of April brought to Portugal, there were also important changes in the social and land relations in Portugal's rural landscapes. The agrarian reform that followed 25 April sought, through various occupation and collectivisation initiatives, to deconstruct a system that was eminently landowning and exploitative in terms of rural labour. 50 years on from these processes, what kind of "land" do we find in Portugal? What social, economic and labour relations persist or, on the contrary, have disappeared? What continuities and changes have been observed in the uses of and identifications with land? How has land ownership been configured and reconfigured? In this initiative by the Environment, Sustainability and Ethnography (DASE) research group, we invited several anthropologists specialising in the issue of land in Portugal to reflect on different moments in the history of land and its people in Portugal in the post-25 April period.
“Cima de Vila é a terra que visito todos os dias, é a minha promessa de vida” (Venâncio – Tourém)
“O baldio foi dando resposta aos problemas que as comunidades tinham” (José Miguel – Covas do Barroso)
Estas duas frases, tomadas em trabalhos de campo de diferente índole e objetivos, refletem de alguma forma a importância e a relação que os agricultores do Barroso têm com as suas terras. A primeira frase foi fruto do trabalho de campo do mestrado e doutorado na aldeia de Tourém em Montalegre; já, a segunda foi compartilhada comigo em um trabalho de assessoria ao Conselho Diretivo dos Baldios de Covas do Barroso, Boticas que findou com a candidatura dos baldios de Covas para Patrimônio Cultural Imaterial à Direção Geral de Patrimônio Cultural.
Através das histórias de vida de Venâncio e das terras como Cima de Vila pretendemos iluminar diferentes momentos que vêm sendo construídos e vividos por ele desde a década de 1960, época quando chega na aldeia de Tourém e finalizando com o que estamos chamando de ontologia-terra. Já com as narrativas de José Miguel acerca dos baldios chamamos atenção para a luta que os agricultores e vizinhos de Covas do Barroso vêm tecendo contra a mina de lítio que a empresa Savannah quer instalar sobre os baldios dos vizinhos. Da mesma forma que nas narrativas de Venâncio aparecem elencados uma série de elementos que, conjuntamente com a terra, mobilizam sentimentos e sensibilidades próprias de vidas co-construídas na relação, e que se contrapõem aos processos de espoliação e expropriação territorial do presente, mas também, do passado. A relação que os agricultores têm com as suas terras é contínua e sinérgica, pois continuam cultivando, refletindo e atuando em defesa de valores, sentimentos e cuidados com, da, e na terra.
Venâncio e Zé Miguel, creio que não se conhecem, são de duas gerações diferentes, Venâncio poderia ser pai de Zé Miguel, mas os dois com suas práticas e conhecimentos sustentam a maioria dos indicadores utilizados pelos avaliadores da FAO para declarar o Alto Barroso Sitio GIAHS, como patrimônio agrícola mundial. As suas vidas giram à volta da terra. Considero que o GIAHS é um dos últimos reconhecimentos das vidas desses camponeses que cultivam, cuidam e zelam por esse território diverso, complexo e construído ao longo do tempo, por diversas temporalidades. Vejamos então, um desses processos de trabalho, estudo, dedicação, atenção e amor à terra.
Venâncio e Cima de Vila
Venâncio me disse que quando chegou na aldeia de Tourém, ele não tinha terras. Veio da aldeia de Carvalho que fica em Salto: “lá já eram muitos filhos em casa e eu já tinha dois, com a tia Maria”. Na época chegou sem terra e sem casa, mas sabia trabalhar. Foi um dos primeiros a comprar um trator na aldeia ainda na década de 1960, e se inseriu dentro da rede de entreajuda que era a vezeira com algumas cabras. Alugou também, um palheiro e uma casa pequena onde passaram a fazer a vida. Depois de uns meses na aldeia, em que estruturou a casa “saltou” para as minas espanholas e com os rendimentos do seu trabalho nas minas, as cabras, as vacas e as terras começaram a se agregar à casa. Nesse processo, os baldios foram cruciais, pois através das cavadas podia semear batata e centeio, e pastorear as cabras.
Na aldeia de Tourém não houve um plano de florestamento do baldio como em Covas do Barroso, que descaracterizou todo o contorno da aldeia, de áreas mistas dedicadas à silvopascicultura e atividades agroflorestais. Em Covas impuseram o monocultivo de pinheiro e pra finalizar, a proibição das práticas agroflorestais. Os moradores da aldeia de Tourém, diferentemente dos moradores de Covas, puderam continuar usufruindo desse território de uso comum, através do trabalho familiar nas terras coletivas. Dessa forma Venâncio solicitava, ano após ano, autorização para a realização desses cercamentos (Viegas Guerreiro 1982; Bordalo Lema,1978;Lourenço Fontes,1974,1977) temporários das terras de uso comum, com o fim de semear centeio e batatas. As cabras podiam pastar sob o regime local de revezamento do dia de pastor chamado de vezeira, mas também combinando os diferentes locais do baldio ao longo do ano conforme as normas locais impunham para o pastoreio desses ruminantes. Dessa forma Venâncio ia ganhando vivências na aldeia e a confiança dos vizinhos, elementos cruciais para a compra de terra e casa, “não bastava só com ter o dinheiro”, era preciso ter o “respeito” dos vizinhos. O respeito nesse sentido se conquista com o tempo na aldeia, com as boas relações e o entendimento dos códigos locais. Como ele sempre apostou principalmente pelo trabalho na terra, Venâncio sempre foi reconhecido como um dinamizador da atividade agrícola sendo o primeiro a adquirir um trator, introduzindo a silagem nos anos 1990, e se mantendo na agricultura enquanto uma aposta firme e decidida.
“Na época – me dizia – a cooperativa ainda era forte”, e toda a produção de batata de semente que colocou Montalegre no mapa nacional desde a década de 1930 era escoada através da cooperativa, ainda que sempre havia uma percentagem da produção não entregada à cooperativa que era para consumo familiar, “vendida à porta ou do lado galego”. A cooperativa oferecia para os agricultores que quisessem destinar suas terras ou cavadas para a produção desse tubérculo a semente, adubos e uma série de visitas técnicas de fiscalização e assessoria. Dessa forma Venâncio foi entrosando no universo da cooperativa, e como sempre gostou de trabalhar a terra, começou a implementar em Tourém um aumento da produção desse produto. Esse tempo foi conhecido na região como “o tempo da batata”, e quando fazia trabalho de campo nas aldeias, querendo saber as terras que mudaram de uso, a expressão local era: “essa terra virou pra batata”. Essa temporalidade remete para uma territorialidade comunitária, pois essas terras e as vidas dos agricultores constituem as memórias coletivas e suas marcas e impressões estão impregnadas nas pessoas e nas terras. O processo de aproximação ou distanciamento de cultivos e destinações de terras e usos é necessariamente dinâmico. A batata foi ganhando espaço desde os anos 1940, “os anos da fome”, até a década de 1990 em que a disponibilidade de terras, os projetos europeus, e o processo de modernização da agricultura veio a mudar de novo os usos das terras. Em determinados momentos o uso da noção de terra é entendido como a aldeia em si, como já trabalhei em outros momentos (Amoedo, 2018). Os últimos anos do salazarismo foram os de maior êxodo de pessoas “à salto” que na aldeia de Tourém eram conhecidos como “os carneiros” e, esse esvaziamento foi deixando marcas indeléveis nas pessoas, nas terras, nas casas e na aldeia como um todo.
Essas marcas perduram até hoje, podemos observar muitas casas fechadas ao longo do ano e abertas apenas umas semanas no verão, podemos observar nas aldeias netos que não conseguem mais dialogar com seus avós porque só aprenderam francês na escola, esses são também signos do processo de violência simbólica e multifacetada que perduram do regime fascista.
A aldeia de Tourém, apesar de servir como ponte para “o salto” e de ter no contrabando uma alternativa econômica que dava uns rendimentos, também se esvaziou devido o processo de migração. Alguns foram pra Lisboa trabalhar na estiva, já outros foram “à salto” pra França, Alemanha ou Inlgaterra. O esvaziamento das aldeias teve claras consequências sobre as terras produtivas, e Venâncio de alguma forma se beneficiou desse processo centrífugo de pessoas. Na década de 1970, ele foi trabalhar na construção da barragem do rio Salas e na ponte que unia a sua veiga com a aldeia, mas suas energias e trabalhos estavam destinadas à terra, aumentar o número de vacas, as terras etc... Uma tese que merece atenção e que reflete esses dilemas é a de Humberto Martins, também realizada na aldeia de Tourém.
Venâncio, depois de uns anos na aldeia já conhecia a rota para as minas, e negociava os seus produtos além das fronteiras do estado português, com o que com o passar dos anos foi tecendo uma densa rede de “amigos” que assim os chama até hoje, claro os que ainda estão vivos. Abrigava os carneiros em sua casa, combinava com o transporte o lugar de entrega dessas pessoas e, assim foi como algumas das noites da semana eram dedicadas a essa operação. “Passou de tudo em nossa casa”, me contava um dia de novembro ao lado da lareira que ainda mantêm em sua casa como foco de calor mais importante da cozinha. Aos poucos foi comprando mais “territas”, e a casa em que hoje moram, que era de 4 herdeiros. Ele queria a casa completa, com seus palheiros, e a eira em pedra, e isso foi um exercício de engenharia social altamente sofisticado, devido a dispersão territorial dos herdeiros e o receio de vender parte da herança da família. Foram preciso alguns anos até conseguir comprar a casa inteira e a favor de Venâncio jogava o fato de querer manter a casa indivisa. Para chegar ao valor que o último herdeiro pediu, teve que vender todas as cabras da casa. Ainda lembra de como foi a chegada em sua casa e a tristeza na cara de dona Maria, quando lhe disse que tinha vendido todas as cabras, isso a deixou muito magoada, porque se havia alguma coisa que ela gostava de fazer era ir com as cabras. Nem três meses depois dessa compra, Venâncio já tinha reposto parte do rebanho pra dona Maria e seus filhos que, também a acompanhavam.
Com Cima de Vila aconteceu um processo similar ao da aquisição da casa. O nome Cima de Vila remete a uma localização não demonstrada através de estudos arqueológicos, mas com muito peso na história oral e coletiva da comunidade, de que nas redondezas daquelas terras estaria a primeira Vila de Tourém. Quando Venâncio chegou na aldeia já começara o declínio da população, pois os jovens preferiam ir pra Lisboa, Brasil ou França. Quando os migrantes retornavam à terra, caso nenhum parente estivesse precisando das propriedades estas eram emprestadas, arrendadas ou em última instância, vendidas. Dessa forma Venâncio começou a trabalhar mais terras e com o passar do tempo comprar algumas propriedades. Cima de Vila não foi diferente.
Como afirma Ingold com a proposta do dwelling (2000) o processo de construção do habitar está permeado por inúmeras relações com outras vidas, e entendemos que a relação que Venâncio tem com as terras pode ser pensada sob essa ótica. Ele chegou na aldeia e apesar de ser agricultor, como ele mesmo me disse, teve que aprender a desenvolver essa atividade lá, pois as terras eram diferentes. O processo de aprendizagem e experimentação próprio com a terra, ou na terra faz parte da vida dele e de sua própria forma de entender a vida. Por isso que a história de Venâncio e seu êxito como agricultor se mistura com as das suas terras, se tornando indissociáveis, são histórias companheiras e acompassadas.
Cima de Vila é uma parcela que na atualidade tem a volta de 2,5 ha e que majoritariamente está dedicada ao cultivo de feno, pois Sérgio, filho de Venâncio que ficou em casa, mantém uma unidade produtiva familiar de vacas para produção de carne de mais ou menos quarenta reprodutoras. A configuração das terras precisa ser entendida sob uma lente analítica mais ampla tanto biológica quanto temporalmente. A ocupação vegetal das terras, já seja como terra de cultivo, como lameiro para feno ou à monte, responde a combinação de diferentes parâmetros, como destinação principal da atividade produtiva, incentivos fiscais, mercados que não permitem que essa classificação seja determinística nem definitiva. Não podemos afirmar que uma terra sempre terá esse mesmo cultivo ou que não terá como deixar de estar abandonada, esse processo de co-construção das terras (Ingold), implica entender que essa configuração também pode mudar de forma rápida em ciclos de três a cinco anos.
O feno, que é a destinação principal de Cima de Vila, é a base do sistema agrícola praticado na aldeia. No entanto há outros condicionantes práticos que influenciam como são: a máquina que processa o centeio não tem possibilidade de acessar essa terra, portanto o centeio está descartado; o milho, por ser uma terra que está longe do núcleo habitacional e, também a região conta com uma grande quantidade de javali; e, a batata majoritariamente é cultivada para o consumo doméstico e dos animais de casa, com o que não encontramos áreas tão grandes e extensas destinadas a esse cultivo e também preferem nas terras mais próximas da aldeia. Vemos aqui a equalização de condicionantes concretos tanto bióticos como abióticos.
Na tese de doutorado nos debruçamos sobre o conhecimento mobilizado pelos agricultores no sistema agrícola das aldeias de Tourém e Pitões das Júnias (Amoedo Martínez, 2019). Desde uma lente analítica influenciada pelas dinâmicas sociopolíticas e econômicas, cruzadas com a agência (Long,2001) dos próprios agricultores conforme as propostas de Ploeg (2016), apresentamos diferentes configurações das unidades produtivas familiares, tendo em conta o número de animais, o número, e área das terras, destinação de terras e organização do sistema produtivo. Aqui não estou elencando as diretrizes da PAC que também influenciam nesses desenhos.
Já Chayanov tinha chamado atenção para a necessidade de entender as configurações das unidades produtivas familiares entrecruzando o que fazem com a disponibilidade de força de trabalho, a destinação da produção etc. O autor chama a atenção para uma noção que considero inspiradora, o conceito de arte para entender e refletir as relações particulares que os agricultores têm com as suas terras, com determinados cultivos, com o conjunto de sua obra. E, desde aí podemos tratar de entender as estratégias produtivas, traçando linhas de raciocínio que vinculam as terras e as vidas das unidades técnicas (Almeida, 2021) e produtivas que também são familiares, ao longo de décadas, com suas idas e vindas de números de animais, ciclos reprodutivos, força de trabalho e políticas públicas. Mostramos que é preciso estar atento aos condicionantes externos, mas também as reflexões particulares dos agricultores, as aproximações às soluções tecnológicas, ou as experimentações de seus sistemas produtivos, como bem demonstrou Lourenzo Fernández Prieto em sua obra seminal “Labradores con ciencia” (1992), em que são os próprios agricultores os agentes dos processos de inovação.
Assim, Venâncio me relatou inúmeras vezes como foi esse processo, de comprar algumas parcelas menores chamadas por ele de “territas”, semear e experimentar com alguns cultivos, derrubar muros e refazer a superfície da parcela para que área útil e arável fosse maior, fazer poças d’agua com engenhos que ativam de forma remota e automática um sistema de irrigação por gravidade, enfim, “melhorar a terra”. Todas essas ações concretas na terra agregam reflexões, e, a observação fina e detalhada das condições que a priori teriam as terras e as experimentações. Me explicava Venâncio: “naquela territa semeei batata porque era mais sequeira (apontando pra parte alta da parcela), na parte mais baixa, pra lá (apontando com o seu bastão) era tudo milho, porque o rego passa bem lá na divisa”.
São essas as histórias que compõem a vida de Venâncio em Cima de Vila e de Cima de Vila em Venâncio. Ele foi comprando aos poucos, na verdade continua comprando e melhorando as terras apesar de não ser mais agricultor, parcela a parcela, experimentando, cultivando a terra, cuidando da terra, trabalhando com ela. Cada parcela ou “territa” que Venâncio compra entra dentro de um plano e não foi diferente com Cima de Vila, até chegar nessa área que hoje tem.
Figura 1: Venâncio saindo com o seu trator Massey Ferguson 240 para trabalhar. Imagem do autor.
Em 2012, quando comecei o meu trabalho de campo na aldeia de Tourém, antes dele vir a ser meu amigo, via aquele senhor com um Massey Ferguson 240 (imagem acima), saindo de sua casa no trator e retornando horas depois. Ele não aparecia mais nos registros feitos na aldeia de agricultores na ativa, mas seu nome aparecia vinculado aos de seus dois filhos Sérgio do Venâncio e Venâncio do Venâncio. No entanto a atividade dele continuava sendo intensa. Anos mais tarde, com a nossa aproximação e convivência cotidiana fui percebendo que aquele trânsito diário respondia a parâmetros que iam além de uma prática agrícola de olhar e estudar como mover as terras para ter um aproveitamento maior ou poder trabalhar mais terra. Segundo as suas palavras os deslocamentos diários de Venâncio à Cima de Vila respondiam a uma “promessa” feita a si mesmo, que, enquanto tivesse forças todo dia iria ver Cima de Vila, como quem vai ao cemitério ou a missa. Para Venâncio Cima de Vila é, como ele mesmo me disse, a obra de sua vida, pois desde ali ele consegue refazer processos que foram sendo importantes em sua própria constituição. Dessa forma a relação entre o humano e a terra em questão, transcende e expande os limites da pesquisa etnográfica, podendo aqui apelar para uma ontologia, nos moldes de Almeida (2021), uma ontologia-terra, neste caso. Ontologias são para Almeida, o acervo de pressupostos para o que existe, e Venâncio, quando coloca a vista no que existe em Cima de Vila, aparecem elencados uma série de processos e aspectos que transcendem a materialidade da terra, é uma vida. Quando o eleva à categoria de promessa, como cristão que é, a terra se torna entidade, e passa a ser um balizador de práticas rituais, mágicas, religiosas, cotidianas de cuidados movidas pela fé, pois Cima de Vila é a santidade de sua vida, e a concretude desta, como terra. Nunca deu tanta atenção aos filhos como deu às terras, me relatava uma das últimas vezes que com ele estive, e isso de alguma forma deixa triste a Venâncio, ainda que de forma breve até que se lhe pergunta se ainda consegue ir lá. Amarrando seu bastão, e sorrindo afirma, “ainda, não todo dia, mas sempre que posso”. A terra precisa ser cuidada, e isso ele cultiva até hoje. Uma das últimas vezes que acompanhei Venâncio à Cima de Vila, ele tinha vasculhado no reboque do seu trator dois baldes de cinza da lareira, uma vez em Cima de Vila foi cuidadosamente colocando uma parte dessa cinza espalhada pelo rego, para depois abrir a poça e que a água levasse essa cinza e a distribuísse pela parcela. Aquele ato minúsculo diante do tamanho da terra é o que ele chama da “estima da terra” e “zelar”, e que toda terra precisa, pois, essa atenção, vai além da produção, é recíproca, a terra lhe dá.
Ontologias conforme Almeida chama atenção, respondem também ao âmbito do pragmático, e dessa forma, a ontologia pode ser política. A ontologia política mobiliza argumentos que ajudam a tensionar a divisão natureza-cultura, no que chamamos de conflitos socioambientais, seguindo por exemplo, as formulações de Arturo Escobar.
Afirma este autor que na base da ontologia dualista a que separa natureza de cultura, radica a expansão do capitalismo em cima das terras das populações indígenas que são vistas apenas como repositórios de recursos a serem explorados (Shiva, 2000). Já os indígenas mobilizam frente a esse anseio extrativo a ontologia relacional (que não separa natureza de cultura) para tensionar os preceitos dessa vontade de expansão territorial sem fim, falando de vida, dos não-humanos que moram nessas terras, nos sentimentos e outros mais que humanos.
Zé Miguel e Covas do Barroso
No caso de Covas, com a implementação do monocultivo de pinheiro no baldio, a recuperação desse para seus fins originários, que é servir ao povo, foi uma grande conquista. Agora têm “batendo à porta” uma tentativa de construção de uma mina de lítio, a maior da Europa, escutamos em todos os cantos da aldeia. Das minas de Volfrâmio e pedreiras usadas pelos moradores da aldeia na metade do século XX, para este empreendimento monstruoso do capital financeiro, os baldios de Covas, aparecem no centro da disputa.
Os lemas que os coletivos mobilizados contra a mina espalham pelo Barroso remetem também para essa ontologia política, pois diante da afronta e do projeto de extração de lítio da Savannah, os cartazes dizem: “Não a mina, sim a vida”. Voltamos, portanto, a uma narrativa que coloca no centro de sua trama a vida, e se opõe novamente ao processo homogeneizador da ontologia dualista que vê a natureza como um repositório de recursos a serem explorados.
Covas do Barroso está desde o 2019 nas manchetes, não pelo que fazem os vizinhos que é manter e cuidar as suas terras, criar seus animais e abelhas. As notícias em que eles aparecem, têm como centro a mina, uma manifestação, um novo estudo apresentado pela empresa ao estado, que coloca os moradores da aldeia, apenas como reativos. No entanto, o que percebemos realizando trabalho de campo foi uma agência (Long, 2001) maior do que uma resistência apenas, e não estou com essa frase desmerecendo a noção de resistência. O que vimos na aldeia é todo um conglomerado de instituições e conhecimentos que ficam subjugados ao projeto neo-extrativista, sob a afronta que é esse projeto para a vida deles, os termos da vida desaparecem.
Os inúmeros sistemas diferentes de gestão da água que existem na aldeia e que foram sendo adaptados ao longo dos decênios e dando abrigo as mudanças da aldeia ficam em segundo plano. Na aldeia de Covas nos comentavam sobre a água de regadio que o sistema fora desenhado quando apenas tinha cinco casas que regavam na aldeia. As aldeias de Muro e Romaínho tem um funcionamento diferente mas baseados nos mesmos preceitos do comum (Ostrom).
O funcionamento do sistema de rega é um vestígio de necessidades passadas precisas no presente. O registro dessa história oral, é um exercício que coloca os tempos imemoriais que compõem a história coletiva em jogo no presente, e como continua sendo praticado, segue a ser atualizado. Com a divisão e implantação de novas casas na aldeia esse sistema de dia por casa teve que ir sendo modificado pelos vizinhos, mas como um recurso comum (Laval;Dardot, 2017), por definição precisava atender todas as casas. Os vizinhos foram assim desenhando um complexo sistema de aviação da água que impera apenas nos meses de verão, entre julho e agosto. É tão claro o processo de reconfiguração coletiva do sistema de aviamento de água que ainda hoje os marcos que definem a mudança de hora da água de umas parcelas pra outras é uma marca linear feita na pedra da base do cruzeiro da igreja principal de Covas. Quando o sol cobre essas marcas os próximos regantes podem começar a sua atividade, cortando a água do que a estava usufruindo. Porque afirmo que é visível esse processo de reconfiguração? Porque na pedra, não existe apenas uma marca, se não que temos duas, uma paralela a outra, uma menor que a outra, cada uma define um sistema diferente de irrigação por horas. E temos duas marcas também no calhão que está na aldeia de Romaínho. Esse sistema vernacular de aproveitamento e distribuição de água usando a gravidade é demarcado pelo sol e se estende da aldeia para o baldio, pois além dessa pedra no cruzeiro que está na aldeia, os calhões, são pedras que estão na serra, nos baldios e que marcam o ritmo da vida de Covas, anunciando a chegada “do sol quente” ou “do meio dia”. Quando o sol ilumina esse calhão, a água pertence a outra pessoa já.
Figura 2: Cruzeiro de Covas. Abaixo a esquerda é possível visualizar as duas marcas na pedra. Acervo do Autor.Nos baldios os compartes de Covas têm também as
silhas que são estruturas em pedra circulares com uma única entrada, orientadas ao sul nas encostas da serra que albergam apiários. Essas estruturas defensivas, desenhadas segundo a memória coletiva para evitar o ataque dos ursos, compõem a paisagem e evocam os cuidados também com os não humanos como as abelhas. Nos contava Ti Augusto que quando ele começou a sua atividade como apicultor as abelhas “não precisavam no auxílio do apicultor, viviam sozinhas no mato” em relação a diferença que existe na atualidade, em que as abelhas precisam ser cuidadas pelos humanos. Ti Augusto tem mais de oitenta anos e fala que as abelhas precisam de silêncio pra elas produzir, e que “disso depende seu bem estar (…) que tudo isso são coisas simples mas que têm a sua teoria”.
Figura 3: Marcas na pedra. Acervo do Autor.
O conhecimento e as histórias que carregam as pessoas e suas terras ficam invisibilizadas por uma dinâmica de opressão que os está deixando doentes, tristes, mas mobilizados, em defesa da terra. E é justamente com a terra e com os baldios que José Miguel nos chama atenção para o que é realmente importante, quando afirma que o baldio dará a resposta. Os baldios, como terras de uso comum, têm em seu cerne a inclusão e o sistema democrático, são, portanto, o ponto de encontro das assembleias, como nos instiga a pensar Anna Tsing (2019), onde a política dos não-humanos também se considera, porque não se entende a vida só para os humanos.
O baldio, será, como afirma José Miguel quem dará a resposta, e, é no baldio que repousam as expectativas de poder continuar com uma vida que não agride outras vidas.
Na imagem e constituição dos baldios está a força de mobilização coletiva, como aponta Laval e Dardot (2017), a possibilidade de pensar e fazer com a terra e contra os monopólios e as monoculturas, a vida por diante. Portanto, depois de cinquenta anos do 25 de abril, podemos ver como as terras continuam estando no centro da trama de tensões, mas entregando para os seus parceiros humanos claves de luta e mobilização.
Figura 4: Cartazes contra a mina. Acervo do Autor.Diego Amoedo (UFOPA)
Diego Amoedo é galego, engenheiro florestal de formação com mestrado e doutorado na Antropologia pela UNICAMP. Vinculado academica e afetivamente ao Alto Barroso desde 2011 é professor de Antropologia na UFOPA desde 2017 e vem desenvolvendo pesquisa sobre regimes de conhecimento, sistemas agrícolas e agrários, no Barroso e na amazônia central, no Estado do Pará.
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