Esta seção pública é uma versão de contribuições originais que experimentam com a multimodalidade e busca valorizar os formatos visuais, como a fotografia, o desenho, o grafismo e o audiovisual, ou filhos incorporados na reflexão etnográfica.
Introdução
No Brasil, por volta dos anos 1980, diversos trechos de linhas férreas foram a serem desativados e as estações férreas perderam sua função original de embarque e desembarque de mercadorias e passageiros, ficando muitas delas largadas ao acaso. Assim como eles, foram abandonados também os sítios ferroviários, tornando-se suscetíveis à ação do tempo – no caso de intempéries – e à ação humana – no caso de depredações e retaliações no patrimônio ferroviário. O objetivo deste trabalho é investigar e cartografar os territórios do abandono das estações férreas nas cidades-gêmeas de Jaguarão-Rio Branco e Santana do Livramento-Rivera na fronteira Brasil-Uruguai, associando as dinâmicas urbanas com o patrimônio ferroviário, com o objetivo de revelar as potências que emergem nesses territórios.
O método que adotamos foi a cartografia sensível, que tem como intenção mapear os processos de uma experiência, capturando e registrando as atitudes apresentadas em um determinado território, em nossa passagem por lá em 2019. A investigação faz uma aproximação com a etnografia no modo como propõe uma observação no campo, ativando um olhar de perto e de dentro, atento às diferentes manifestações que surgem e estão abertas à imprevisibilidade (Nobre, Amorim e Frangella 2019). Os mapas dos encontros e os mapas das intensidades anunciam as rupturas marcadas no corpo-cidade
[1] e revelam as afecções percebidas a partir da experiência em campo.
[2] Ressaltamos a importância da aproximação com o plano real a fim de evidenciar e visibilizar a potência da escuta, da fala, da pausa, do ritmo mais lento para experimentar e sentir a cidade, trazendo a abertura para novas leituras a partir da nossa sensibilidade.
O registro do processo: as paradas nas estações férreas na fronteira Brasil-Uruguai
Num primeiro momento é importante contextualizar o território onde estão inseridas as estações férreas investigadas: a fronteira Brasil-Uruguai. Uma fronteira marcada por características fortemente militares, tendo passado por momentos de conflito e instabilidade territorial, principalmente entre o século XVIII e início do século XIX. É uma fronteira reconhecida também pela criação bovina
[3] e pelas relações comerciais,
[4] dinâmicas de grande influência que marcaram seu desenvolvimento econômico, social e cultural (Musso 2004). Na primeira metade do século XX, as estações férreas tinham uma forte ligação com essas atividades, principalmente por serem pontos de embarque e desembarque de passageiros, mas também o embarcadouro do gado que era destinado até o porto de Rio Grande, no Brasil, ou até o porto de Montevidéu, no Uruguai (Martins 2001), conforme apresentado no mapa 1.
Mapa 1 – Fronteira Brasil-Uruguai, diminuir as cidades gêmeas com estações férreas.
Fonte: Forneck 2021. Imagem adaptada do Google Earth em 15 de julho de 2021.
Com o tempo, a pecuária começou a declinar, cedendo espaço à produção de arroz e, ao mesmo tempo, foram fortalecidas as atividades ligadas ao comércio. Na segunda metade do século XX, o sistema ferroviário começou a entrar em decadência e, aos poucos, as estações férreas acabaram perdendo sua funcionalidade e muitas delas ficaram obsoletas na paisagem urbana por volta de 1980. Na fronteira Brasil-Uruguai, existem quatro pares de cidades gêmeas que apresentam conexão via linha férrea transfronteiriça especificamente ao abandono (mapa 1), dois dos quais foram objeto de estudo deste trabalho: as cidades gêmeas de Jaguarão-Rio Branco, cujo percurso entre as estações realizamos em dois dias (mapa 2), e Santana do Livramento-Rivera, cujo percurso realizamos em um mesmo dia (mapa 3). A seguir, são apresentados os acontecimentos vivenciados durante a experiência em cada território.
Primeira parada: Rio Branco, no Uruguai
Na estadia de dois dias em Jaguarão, iniciei o percurso com a saída do hotel até a estação férrea de Rio Branco, acompanhado
[5] por Humberto Levy de Souza, professor de arte de Pelotas e integrante do grupo de pesquisa Cidade+Contemporaneidade.
[6] O hotel ficou perto da ponte internacional Barão de Mauá, por onde percorre o Rio Jaguarão, que marca a divisão entre Brasil e Uruguai. O trajeto em vermelho no mapa 2 indica a saída do hotel até a estação férrea de Rio Branco no Uruguai (caminhada realizada no primeiro dia) e o trajeto em laranja indica a saída do hotel até a estação férrea de Jaguarão no Brasil (caminhada realizada no segundo dia).

Mapa 2 – Mapa dos trajetos realizados até a estação férrea de Rio Branco no Uruguai e até a estação férrea de Jaguarão no Brasil. Nenhum total foram percorridos 16,59 milhas.
Fonte: Forneck 2021. Mapa elaborado em 10 de agosto de 2021.
O dia estava nublado, a temperatura era agradável e ventava um pouco. Seguimos na direção da fronteira, cruzando por cima da ponte, que se destaca por sua grandiosidade. A caminhada contínua, no Uruguai, tangenciando a zona das lojas francas , ponto de maior circulação de pessoas motivadas pela comercialização de mercadorias. O percurso segue depois na direção dos trilhos, percorrendo uma travessia elevada contínua à ponte. A bela paisagem que se estende pelo horizonte era de uma zona alagadiça, percebemos haver alguns animais. Mais adiante começou a parte mais urbanizada de Rio Branco e os trilhos se perderam entre o crescimento que cresceu livremente. No entanto, havia alguns moradores por esses trajetos, usando-os como atalho para acessar o outro lado da cidade.
Em 2019, no local da estação férrea de Rio Branco, era visível o cenário de abandono na edificação: a cobertura de embarque estava prestes a desabar, as paredes rachadas, as telhas quebradas, as portas e as janelas danificadas e as plantas se proliferavam por toda parte por causa da umidade. Apesar desse contexto de abandono, vislumbramos um extenso tapete florido que compunha a paisagem e ouvimos cantos de pássaros, o que dava uma sensação de acolhimento (figura 1).
Figura 1 – Conjunto de fotografias da caminhada pelos trilhos de trem desativados até a estação férrea de Rio Branco, no Uruguai.
Fonte: Forneck 2021. Imagens registradas em 26 de novembro de 2019.
Segunda parada: Jaguarão, no Brasil
O dia seguinte amanheceu quente e úmido. Na rua em frente ao hotel havia um canteiro central que encobria os trilhos com o novo calçamento. Ao final dela, uma luz orientada à direita conduzia a uma estrada de terra que passava por trás de algumas residências. Era difícil seguir o caminho dos trilhos na malha urbana, pois, em vários pontos, os moradores construíram parte de sua residência por cima da linha férrea desativada. Contornaram-se as quadras até um grande campo com uma cerca por onde os trilhos desativados seguiam entre o vegetação baixa.
O encontro com a antiga estação férrea de Jaguarão produziu uma mistura de sensações. Ela havia sido restaurada para um novo uso: abrigava agora uma loja maçônica. O perímetro do terreno estava cercado nas laterais e nos fundos, e havia uma câmera de vigilância para monitorar o acesso. O novo uso modificou seu entorno. É como se a estação não pertencesse mais ao sítio ferroviário, por ter ganho um valor próprio, o que faz com que se torne parte da memória de um lugar (Saramago 2008). As dinâmicas urbanas percebidas nessa experiência (figura 2) mostram que outras camadas surgiram na cidade que, aos poucos, encobriram os trilhos remanescentes e, com eles, parte dessa história.

Figura 2 – Conjunto de fotografias da caminhada pelos trilhos de trem desativados até a antiga estação férrea de Jaguarão, no Brasil.
Fonte: Forneck 2021. Imagens registradas em 27 de novembro de 2019.
Terceira parada: Santana do Livramento, no BrasilEra um sábado de manhã, um dia quente com poucas nuvens. Fizemos a travessia pelos trilhos ferroviários no mesmo dia, começando por ir à estação de Santana do Livramento. Exploramos o sítio ferroviário, registramos algumas fotografias e realizamos entrevistas, acompanhados por Laís Portella, arquiteta e urbanista, e Andrews Jobim, professor de filosofia, ambos formados pela Universidade Federal de Pelotas, que auxiliaram no trabalho de campo. No turno da tarde, o destino foi a estação férrea de Rivera, a partir de onde realizamos a caminhada pelos trilhos de trem entre estas duas estações (mapa 3).

Mapa 3 – Mapa do trajeto realizado a pé entre as estações férreas de Rivera, no Uruguai, e de Santana do Livramento, no Brasil. Foram percorridos 14,63 quilômetros.
Fonte: Forneck 2021. Mapa elaborado em 26 de maio de 2021.
Partimos do hotel em direção à estação reconvertida de Santana do Livramento. As ruas com desníveis tornaram a caminhada mais cansativa. Avistamos um quartel no topo de um morro que ocupava uma quadra inteira. Em seguida, localizamos a estação. A edificação estava mal conservada e apresentava sinais visíveis de infiltração ocasionada por água da chuva. Em frente ao prédio havia alguns pórticos de concreto e uma pequena praça precária por onde os carros de autoescola faziam suas práticas de manobra.
Em 2019, na realização da pesquisa de campo, funcionavam ali, sob administração da Prefeitura de Santana do Livramento, o Centro Cultura e o Museu David Canabarro, contando, respectivamente, a história das ferrovias no estado e a história da cidade. Havia pouca movimentação no local. Nos fundos da estação, o vazio era ainda maior. Estava tudo em silêncio, deixando que o tempo agisse no local (figura 3).
Figura 3 – Conjunto de fotografias do entorno da estação férrea de Santana do Livramento, no Brasil.
Fonte: Forneck 2021. Imagens registradas em 07 de dezembro de 2019.Quarta parada: Rivera, no UruguaiSeguimos em direção à última parada. Cruzamos a fronteira a pé
[7] e caminhamos até a estação de Rivera. A primeira sensação foi de estranhamento pela simplicidade da tipologia arquitetônica. A estação estava em bom estado de conservação, construída com pedra de areia e telhado de duas águas com telha francesa. Ao lado, havia um pequeno portão que dava acesso aos fundos da estação. Na plataforma de embarque ainda havia objetos do seu período ferroviário, como um sino, bancos, bebedouro, arandelas e algumas placas informativas.
No sítio ferroviário havia alguns prédios de grande porte e uma locomotiva colorida nos trilhos. O transporte de passageiros havia sido retomado naquele mesmo ano (2019); as viagens seguiam até a cidade de Tacuarembó, distante 113 quilômetros de Rivera, uma vez ao dia durante a semana. Contatamos dois homens funcionários da rede privada de transporte ferroviário, mas estavam proibidos de dar qualquer informação. Durante a conversa informal referimos a nossa intenção de caminhar pelos trilhos ferroviários e aconselharam não seguir por ali por ser uma região perigosa, com risco de assalto.
Com receio, desviamos um pouco o caminho, seguindo por um trajeto com maior movimentação. Quanto mais tentávamos uma aproximação aos trilhos, mais eles se afastavam, como se houvesse uma força que nos repelisse, direcionando-nos à linha de fronteira, por lá ser o “seu lugar”. Assim seguimos, amedrontados (figura 4). Em solo brasileiro, alguns trechos ferroviários haviam sido bloqueados. Foi necessário contornar algumas quadras até conseguirmos acessar os trilhos novamente. O verde crescia livremente entre os dormentes, as inúmeras bifurcações no sítio ferroviário dificultavam a direção do caminho a seguir até que, por fim, localizamos a estação, encerrando a nossa missão.
Figura 4 – Conjunto de fotografias do entorno da estação férrea de Rivera, no Uruguai.
Fonte: Forneck 2021. Imagens registradas em 07 de dezembro de 2019.
Pistas sobre o abandono de estações férreas
Os territórios vivenciados nessa experiência colocaram-nos num ritmo diferente do experimentado nas cidades em que se inserem, o do movimento, da agilidade e da eficiência. A nossa proposta de pesquisa conduziu a um ritmo mais vagaroso, silencioso e introspectivo, trazendo algumas reflexões, principalmente sobre como se vivencia as atividades no dia a dia, no piloto automático, sem perceber, muitas vezes, a interação com o espaço. Sentimos como o ritmo das cidades distancia os seres humanos de seus sentidos, da exploração de novas sensações que não as do cotidiano urbano, da percepção do ar que os rodeia, da captação de diferentes cheiros e texturas. Diante desse contexto, surgiram alguns questionamentos sobre as dinâmicas urbanas na contemporaneidade, anunciando duas pistas sobre as percepções a partir da investigação do abandono das estações férreas, apresentadas a seguir.
A ruptura corpo-cidade
Num primeiro momento, pode-se pensar na configuração urbana que impacta a construção original do sistema ferroviário no planejamento da cidade. Para a sua construção foi necessário avaliar o ponto mais estratégico para implantar a linha férrea, objetivando atender a população, o escoamento de mercadorias e a conexão com outras redes já existentes. Foi preciso ainda prever onde seriam implantados os demais prédios que compõem o sítio ferroviário, como galpões, postos de serviços, etc. Toda essa estrutura traz uma leitura da história para a cidade. Com o fim do sistema ferroviário, por volta de 1980, houve um processo de “involução” que inutilizou esse sistema, desencadeando seu abandono.
Sob essa perspectiva, elaboramos os mapas dos encontros. São mapas com ícones que apresentam os principais pontos de destaque na caminhada que fizemos em 2019. No mapa de fundo, a mancha urbana é apresentada pelos tons acinzentados e o contraste com a paisagem natural é mostrado pelas manchas esverdeadas. Assim, no mapa 4 é apresentado o mapa dos encontros em Jaguarão e Rio Branco e, no mapa 5, o mapa dos encontros em Santana do Livramento e Rivera.
Mapa dos encontros em Jaguarão e Rio Branco
Mapa 4 – Mapa dos encontros em Jaguarão e Rio Branco na fronteira Brasil-Uruguai.
Fonte: Forneck 2021. Mapa elaborado em 27 de setembro de 2021.
No contexto da fronteira entre Brasil e Uruguai, a ponte e as bordas do rio Jaguarão são pontos marcantes na paisagem, pois trazem a questão com o estrangeiro no território de fronteira. No lado brasileiro, pode ser percebido o acampamento cigano próximo à ponte que conecta o outro lado da fronteira. Como apontado por Fuão (2014), a ponte pode servir como ponto de acolhimento para aquele que vem de fora. No lado uruguaio, podem ser identificadas as free shops, lojas que recebem o turista (estrangeiro) que vai comprar mercadorias – uma atividade marcante no contexto fronteiriço (Musso 2004). Em Jaguarão, na parte superior da imagem, os trilhos podem ser entendidos como algo “ultrapassado” e, por isso, contrários ao movimento de evolução da cidade, tendo sido reconvertido, assim, num canteiro central com palmeiras em seu lugar. Mais adiante, o traçado regular da malha urbana é dissolvido pelos moradores que invadiram a linha desativada do trem. Estes novos usos se sobrepõem à história e revelam as novas dinâmicas nesses territórios. No entanto, por onde a expansão urbana não se alastrou, o complexo ferroviário segue em um estado de aguardo, sendo estes os lugares do possível, com outro ritmo, mais lento, silencioso e pausado. A natureza é quem toma conta da paisagem, trazendo um sentimento de introspecção e contemplação. Os trilhos ferroviários compõem esse cenário, mas estão adormecidos. Mais adiante, eles dividem a cidade em duas partes, mas também são elos entre as localidades. Os moradores os utilizam como ponto de passagem, conexão e atalho, uma fuga dos caminhos de ordenamento urbano reticulados.
Mapa dos encontros em Santana do Livramento e Rivera
Mapa 5 – Mapa dos encontros em Santana do Livramento e Rivera na fronteira Brasil-Uruguai.
Fonte: Forneck 2021. Mapa elaborado em 14 de setembro de 2021.
Na cidade de Rivera, que aparece na parte inferior do mapa 5, os caminhos percorridos ocorreram principalmente pelas ruas onde predominavam o ordenamento da malha urbana, onde havia mais movimento e sensação de segurança. Uma força repelia qualquer tentativa de aproximação com os trilhos e sentíamos o abandono de forma intensa e amedrontadora. Caminhar por lugares menos visados e com menos movimento é estar diante de situações imprevisíveis (Rocha et al. 2017), não se consegue “pré-ver” o que vai acontecer e, assim, fica-se diante das próprias inseguranças e medos. Ao cruzar a fronteira, em Santana do Livramento, que aparece na parte superior do mapa 5, aos poucos o ritmo mais lento e os momentos de contemplação foram retomados. O abandono se encontrava nas extremidades do percurso, onde estavam as estações férreas. A caminhada fez sentir o que é ser estrangeiro na fronteira, nesse lugar imprevisível, da incerteza e da indeterminação.
O abandono sensível
Os sentidos vão além das percepções visuais, auditivas, sonoras, táteis e gustativas. É possível experimentar a relação que o corpo tem com algum espaço e perceber como os estímulos externos podem proporcionar uma experiência multissensorial. Cada acontecimento promove uma percepção diferente, podendo alcançar inclusive outras dimensões. Derrida (2012) afirma que uma experiência pode ir além das categorias de subjetividade e objetividade, citando o exemplo do desenho: quando diante de uma obra de arte quem a observa fica sem fôlego, expressa que os desenhistas ou pintores não buscam apenas “mostrar algo”, mas dar visibilidade ao que permanece invisível, e isso não tem a ver com o que é visível.
Para apresentar conexões a partir de uma trama que se estabelece com o entorno, com os sentidos e com a intensidade dos acontecimentos ao longo do percurso, foram elaborados os mapas das intensidades (mapas 6 e 7). Os “nós” desses mapas revelam os principais pontos durante a caminhada, os nós maiores indicam as estações férreas, elementos que nortearam esta pesquisa, e os demais, as maiores ou menores relações com o sistema ferroviário. Os nós apresentam ainda uma escala de cores, os tons vermelhos revelam os pontos com maior intensidade durante a caminhada, e os amarelos os de menor intensidade. Essa relação tem antes a ver com o acontecimento e não necessariamente com o sistema ferroviário. A seguir, são apresentados os mapas das intensidades nas cidades estudadas.
Mapa das intensidades em Jaguarão e Rio Branco
Mapa 6 – Mapa das intensidades em Jaguarão e Rio Branco na fronteira Brasil-Uruguai.
Fonte: Forneck 2021. Mapa elaborado em 28 de setembro de 2021.
A beleza da paisagem foi um grande destaque, tanto para mim quanto para alguns dos entrevistados. Essa percepção se fez presente pelo contato com a natureza, mas também pelos encontros ocasionados no caminho. Um retorno às sensações dos encontros proporcionados pelas estações férreas, mas, agora, de outras formas. Apesar do sítio ferroviário de Rio Branco, que aparece na parte inferior do mapa 6, aparentar um abandono visível, havia uma força óbvia entre os elementos que compunham aquele território. Dava-se ali a abertura para a hospitalidade, para as conexões com o outro, para as possibilidades, sendo possível que diversos tempos coexistissem num único tempo (Fuão 2004).
Em Jaguarão, que aparece na parte superior do mapa 6, o sentimento foi um misto de frustração, desânimo, excitação e rompimento. Em diversos momentos, foi possível perceber que a história do período ferroviário estava se perdendo, o caminho que o trem percorreu havia sido soterrado para dar lugar a outras dinâmicas. Mas marca sobre marca, mesmo sobrepostas, elas permanecem lá, mostrando-se em suas cicatrizes e fazendo revelar as camadas da cidade (Pesavento 2004).
Apesar de a estação férrea apresentar um bom estado de conservação, o novo uso que lhe foi, entretanto, dado modificado aquele território. Um abandono que é sentido, um abandono de sentido, pois parte do complexo ferroviário se desintegrou do restante e sua potência também se dissipou. Cada experiência proporciona uma percepção diferente em relação ao abandono, suas conexões e intensidades, como pode ser percebida no mapa das intensidades nas cidades de Rivera e Santana do Livramento (mapa 7).
Mapa das intensidades em Rivera e Santana do Livramento
Mapa 7 – Mapa das intensidades em Santana do Livramento e Rivera na fronteira Brasil-Uruguai.
Fonte: Forneck 2021. Mapa elaborado em 28 de setembro de 2021.
Em Rivera, que aparece na parte inferior do mapa 7, como percepções entre os elementos foram bem delimitados dentro do complexo ferroviário, trazia uma relação pouco sentimental e mais operacional e econômica. A tentativa de nos aproximarmos dos trilhos para que possamos avançar. Uma força envolvida-nos e nos jogados para outra direção impossibilitando fazer a “costura” entre os trilhos e as afecções. Diante dessa força, permita-se sentir.
Em solo brasileiro, que aparece na parte superior do mesmo mapa 7, volta a ligação com o abandono, afetação causada pela relação da natureza com o sítio ferroviário. Há novamente uma interação do corpo com o território, onde o caminhar mais lento e contemplativo proporcionou uma reconexão interior. Quanto mais perto da estação, mais a sensação de abandono se intensifica, um abandono que transborda e atinge qualquer uso existente na estação. É como uma onda de tsunami que se alaga por onde se alastra. Em cada cidade, é possível vivenciar experiências múltiplas, que só acontecem em função da abertura que se dá nesse tipo de investigação, que coloca um pesquisador no plano da experiência para sentir e explorar territórios imprevisíveis.
Considerações finais
O abandono das estações férreas não pode ser entendido como abandono de pontos isolados na cidade, pois todo o complexo ferroviário carrega uma força que rompe com a malha urbana, ramifica-se e ultrapassa territórios. Não são somente fronteiras geográficas, entre um país e outro, mas fronteiras sensíveis. São camadas que por vezes se encontram ocultas, que serem ao acessadas com a devida atenção tornam possível adentrar em um ritmo mais lento, silencioso, contemplativo e potente na cidade.
Nessa perspectiva, este trabalho evidencia outro ponto de vista para esses espaços, muitas vezes ditos como isolados, distantes e contrários às ideias desenvolvimentistas de evolução urbana. Ali não encontramos o ritmo frenético dos centros urbanos, o percurso acelerado das pessoas e pouca afetação do corpo com o espaço. Tendo dada abertura ao desconhecido, encontramos no abandono das estações férreas ou ordinárias, as trocas sensíveis e múltiplas potências foram despertadas.
A contribuição desta pesquisa é indicada como a experiência do corpo no plano real pode ocasionar novas formas de ver, pensar e ocupar a cidade. Os mapas revelam a importância do contato com as pessoas que moram ou viajam por aqueles lugares, uma vez que indicam que, por trás do abandono, existem histórias de vida e sentimentos que marcam, ainda, o período das ferrovias. Muitos desses sítios permanecem em estado de guarda, na esperança de que sejam novamente lugares de trocas e encontros. Por isso, traz intimismo, seja pela proximidade com a natureza e os animais, seja pelo ritmo mais lento da viagem.
O abandono trouxe uma abertura para a imprevisibilidade, dando lugar a diferentes dinâmicas e múltiplas sensações que só foram sentidas vivenciando esses lugares. São pontos nos quais, ao contrário do período ativo dessas linhas férreas, não há o controle de fluxos e de corpos, as atividades escapam a tudo aquilo que é rígido e estruturado como acontece em outras regiões. Assim, encontramos um poder que se manifesta por meio das relações de trocas que são variáveis com o olhar ou com o diálogo com o outro. É necessário lembrar que o planejamento urbano vai além de sua funcionalidade e da setorização dos lugares, é preciso possibilitar que as relações sociais possam acontecer de forma intimista, natural e indeterminada, para que assim seja possível proporcionar espaços que acolham o múltiplo, o diverso e o heterogêneo nas cidades.
Vanessa Forneck e Eduardo Rocha
Vanessa Forneck (vanessaforneck@usp.br) – Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, IAU-USP, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8796-0906. CRedit: conceituação, investigação, metodologia, administração do projeto, visualização, redação do rascunho original, redação – revisão e edição.
Eduardo Rocha (amigodudu@gmail.com) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pelotas, FAUrb-UFPel, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5446-9515. CRedit: conceituação, investigação, supervisão, redação – revisão e edição.
Agradecimentos
Ao financiamento de bolsa de mestrado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – código de financiamento 001.
Financiamento
Financiamento de bolsa de doutorado: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), bolsa concedida sob o processo de n° 2022/09881-9.