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Fernando Barbosa Rodrigues
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Neste artigo discuto as reconfigurações do fenômeno chamado de culture jamming, característico da dimensão comunicativa do consumo político, a partir da apropriação de memes da Internet como uma ferramenta de crítica ao consumo. Com base na
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Jordi Nofre
The historical neighbourhood of Bairro Alto is the city’s most iconic nightlife destination, especially for tourists visiting Lisbon (Portugal). The expansion of commercial nightlife in this area has been accompanied by the increasing presence of
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In this article we present an exercise of reflection on the challenges involved in writing and studying the biographies and autobiographies of indigenous intellectuals in different geographical, historical and political scenarios: Mexico and Brazil,
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Elizeu Pinheiro da Cruz e Iara Maria de Almeida Souza
Ancorado em anotações elaboradas em uma etnografia multiespécie, este texto formula uma leitura de laboratórios de ciências biológicas como práticas situantes de atores humanos e não humanos. Para isso, os autores trazem à baila plantas
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Vanessa Forneck e Eduardo Rocha
Esta pesquisa cartografa e investiga os territórios criados em decorrência do abandono das estações férreas, acentuado a partir dos anos 1980, nas cidades gêmeas de Jaguarão-Rio Branco e Santana do Livramento-Rivera, na fronteira
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In this text we address the possibility of deconstructing the relationships – that have water as a resource available to humans – that have ordered some dichotomies such as anthropos-nature, establishing that there are methodologies, theories
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Filipe Verde
Neste ensaio procuro primeiro identificar as razões do lugar marginal que a arte desde sempre ocupou no pensamento antropológico, sugerindo que elas são a influência da conceção estética de arte e da metafísica que suportou o projeto das
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Diogo Ramada Curto
Celso Mussane (1957-) é um pastor evangélico moçambicano. Licenciou-se na Suécia (1994) e tirou o curso superior de Teologia Bíblica na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em Londrina no Brasil (2018). Entre 2019 e 2020, publicou
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[+]Gianmarco Marzola
João Afonso Baptista
30.03.2025
Gianmarco Marzola e João Afonso Baptista (ICS-UL, Portugal)
Esta coletânea visa capturar o espírito coletivo, experimental e criativo da Oficina de Escrita Etnográfica, realizada na primavera de 2024 pelo grupo de investigação “Diversidades: Etnografias no mundo contemporâneo”[1] do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. A oficina contou com 12 participantes, alguns dos quais iniciantes na escrita etnográfica. Cada participante mergulhou nas suas experiências empíricas como uma nova aventura heurística e epistemológica, demonstrando um comprometimento excecional e uma dedicação impressionante. Os textos apresentados são o resultado do trabalho realizado ao longo de três sessões e continuado fora delas, impulsionado pelas discussões e atividades desenvolvidas durante esses encontros. Durante as sessões, cada participante escreveu o seu próprio texto e contribuiu para os textos dos colegas, discutindo questões críticas que emergem na prática etnográfica e sugerindo novas abordagens após a leitura atenta dos textos. Em duas ocasiões, a oficina contou com a participação de dois convidados que enriqueceram significativamente o processo criativo etnográfico. Na segunda sessão, tivemos a presença do Felipe Milanez, da Universidade Federal da Bahia; e na terceira sessão, do Humberto Martins, da Universidade do Alto Douro e Trás-os-Montes.
Para cimentar a diversidade de abordagens etnográficas dos participantes, a oficina centrou-se em dois conceitos: inclusão e exclusão. Além da elasticidade que os caracteriza a ambos, um dos seus atributos é que não podem ser compreendidos isoladamente. Inclusão e exclusão são conceitos interdependentes, definidos pela sua mútua oposição. Eles exemplificam as relações que surgem a partir do contraste, diferença, variedade, refletindo o tema central do grupo de investigação que organizou esta oficina de escrita: “Diversidades”. Com base em ambos os eixos, organizámos os textos que seguem nessa publicação coletiva.
Nos primeiros seis textos, os autores exploram a ideia de inclusão a partir das suas experiências etnográficas e do trabalho colaborativo desenvolvido na oficina. A inclusão emerge associada à componente mais “íntima” da abordagem etnográfica, frequentemente relacionando-se com a história pessoal de quem observa e (d)escreve. Os últimos seis textos deste trabalho conjunto dialogam com a ideia de exclusão. Numa trajetória quase oposta à da inclusão, a exclusão parece relacionar-se a um poder “outro”, superior, hierárquico, o qual estabelece as categorias e, assim, as maneiras de entender e constituir as realidades promovidas pelas instituições.
INCLUSÃO. No texto de Kátia Favilla, os objetos da sua investigação, nomeadamente o javali e o eucalipto, tornam-se solidários com a investigadora, às vezes confundindo a origem da narração. São todos seres nativos de outro lugar. São os “outros”, alvos frequentes de políticas de objetivação e repulsão, sendo regularmente incluídos na mesma categoria de “alheio”. O mesmo processo está presente no texto de Juliana Ardenghi, que aponta para os produtos alimentícios brasileiros, bem como para os locais onde são vendidos, como parte da intimidade e inclusão parcial de migrantes brasileiros em Lisboa. Carolina Ribeiro reflete sobre um fenómeno que sugere uma inversão histórica: a imigração e inclusão dos xamãs indígenas do Brasil em Portugal, no território da sua colonização europeia, através da mercantilização dos serviços espirituais que oferecem. Baseando-se na sua pesquisa na Lagoa da Albufeira, localizada na costa da península de Setúbal, Daniel Oliveira aborda a sustentabilidade como um fator de inclusão e discute como as transformações nas paisagens naturais-e-humanas estão intimamente relacionadas aos processos de inclusão e exclusão. O texto de Luísa Coutinho abre mais uma fenda na intimidade da pesquisadora, indagando como na história do casamento do seu avô — um português que emigrou para a República Democrática do Congo — com uma mulher da alta sociedade congolesa, o conceito de inclusão revela as várias hierarquias e desigualdades interseccionais do poder patriarcal e colonial. Finalmente, Duygu Ribeiro, ao questionar a presença da exclusão em iniciativas de inclusão, narra parte da sua investigação sobre os usos do espaço público pelos imigrantes em Lisboa, especialmente na área do Martim Moniz, entrelaçando diversos temas como a coexistência multicultural, o planejamento urbanístico, os ritmos citadinos e o paradoxo entre o que se ouve e o que se vê durante a pesquisa etnográfica.
EXCLUSÃO. O texto de Leonor Rosas dá voz às estátuas e monumentos no espaço público português, refletindo sobre as lógicas de exclusão de certas narrativas históricas que estes incorporam. Tais lógicas, reforçadas pelo Estado Novo durante a Exposição do Mundo Português em Belém, em 1940, evidenciam a institucionalização do negacionismo histórico e da dominação colonial. No texto seguinte, Maria Concetta Lo Bosco descreve como a “normalidade” social opera uma discriminação contínua contra pessoas neurodivergentes fundamentando processos de exclusão que as impedem de participar de forma ativa na sociedade. Noutro contexto, José Vicente Mertz relata como a (r)existência do povo curdo na diáspora está ligada a uma forma de autoexclusão para preservar a sua identidade. Para os curdos, a inclusão no país de destino é vista como uma força inibidora de assimilação imposta pelo estado-nação, que os acolhe como imigrantes, mas simultaneamente nega-lhes a sua identidade cultural e política, especialmente ao enquadrá-los na subcategoria de exilados. Tomando outra direção, Fábio Rafael Augusto retrata um episódio onde a normalidade opera de maneira conflituosa, separando beneficiários e operantes numa iniciativa de apoio alimentar. Em seguida, o texto de Joana Vidal Maia ilustra os desafios enfrentados por mulheres com diversas histórias de vida para usarem e acederem a diferentes métodos contracetivos, devido às políticas e práticas médicas que oscilam entre inclusão e exclusão, em Portugal e no Brasil. A concluir, Madalena Rolim Patriarca ilustra a realidade e a comunicação de um paciente psiquiátrico, relatando, num processo de tensão emocional, a experiência vivida pelo interlocutor.
Estes textos não apenas refletem diferentes expressões linguísticas, mas também evidenciam a diversidade das experiências de trabalho de campo e de vida dos participantes na Oficina de Escrita Etnográfica. Juntos formam um campo singular de criatividade e pluralidade. Com os seus diversos sotaques, os textos integram múltiplas vozes e formas de etnografar, conferindo à coletânea, tal como foi apanágio da oficina, um caráter único de diversidade. Sobretudo, este trabalho coletivo busca inspirar leitoras e leitores a refletirem sobre as suas próprias práticas de escrita e análise, talvez ampliando a compreensão sobre a dimensão íntima e relacional do “gesto etnográfico” (Pina-Cabral 2007).
Kátia Favilla (ICS-UL)
É inverno, as serras estão cobertas por uma fina camada de neblina ao amanhecer. O frio desencoraja atividades mais intensas e longas caminhadas. Subo e desço essas serras há muitos anos; nem sempre foi assim. Havia animais de grande porte, eram ameaçadores; havia uma enorme quantidade de animais de pequeno porte, muitas plantas, arbustos, matos e árvores. A terra tinha outro cheiro, outra umidade.
Ando hoje muito mais do que gostaria, mas sei que se procurar encontro o que procuro. Nas serras agora há plantios de árvores; quase não há mais as árvores de antigamente, mas aqui e acolá ainda existem algumas, e nos plantios há sempre uma matéria biológica nova e que sabe tão bem.
Conforme desço há mais oferta de alimentos, mas também mais vigia, menos chances de passar sem ser notado. Mas sigo para lá; a fome se faz senhora. Encontro uma mata cheia de opções. Ando, procuro e as encontro. Tenho flores saborosas, tenho bolotas, tenho até cogumelos. Não gosto deles; deixo-os passar. Outros, depois de mim, devem apreciar esses seres estranhos de odor forte. Levo o que quero dessas matas, deixo meu rastro e o que não me apetece. Quase encontro a mulher que escreve estas linhas, mas ela chegou um pouco depois e estava à procura dos cogumelos para uma saborosa refeição.
O encontro desta que escreve com o javali foi a concretização do encontro com o campo de investigação em Arganil. Percorremos as mesmas serras, as mesmas matas e realizamos buscas, ainda que com objetivos distintos, mas no mesmo território.
O javali (Sus scrofa), animal de porte médio originário da Europa Central e já espalhado por vários cantos do planeta, é um onívoro que tem se transformado em vilão, em “praga” por Portugal continental. As mudanças nas paisagens florestais fizeram diminuir a oferta de alimento preferencial, e os predadores naturais só existem em ambientes controlados, diminuindo as ameaças e impactando no aumento populacional dos javalis. A busca por sobrevivência tem se expandido para hortas familiares, gerando o aumento significativo de conflitos entre javalis e humanos.
O javali é uma das espécies que tem se mostrado emblemática de como as mudanças nas paisagens dos campos e serras em Portugal geram desequilíbrios ambientais, fragmentam as serras, produzem ruínas e como essas estão sendo vivenciadas, pelo javali, como exemplo de adaptação, e pelos humanos, como agentes das mudanças e, também, da adaptação. As florestas biodiversas e antropogênicas, cada vez mais raras, são verdadeiros oásis em meio a campos de monoculturas de eucaliptos, pinheiros e, mais recentemente, de pás de geração de energia eólica.
O plantio monocultural do eucalipto (Eucalyptus globulus) se ampliou nas décadas de 70 e 80 do século passado, impulsionado pela crescente indústria da celulose e pelo aumento do preço no mercado mundial. Essa tendência permanece na atualidade em todo o país de maneira geral e de forma alargada na região Centro. A política florestal do Estado Novo e o plantio indiscriminado de pinheiros deram lugar, ao longo dos anos, aos eucaliptais, e as áreas de plantação estão ainda em expansão.
Arganil é um desses locais onde os eucaliptais estão presentes na paisagem de maneira visceral e dominam o olhar; o verde das altas copas espalha-se por toda a extensão do município e pela Serra do Açor. As pequenas e resistentes manchas biodiversas destacam-se na paisagem local, como a Mata da Margaraça e a Fraga da Pena. Os javalis compõem a paisagem local, ora como vilões, ora como companheiros, ora como parte da paisagem que ainda resiste, (re)existi.
O javali, o eucalipto e eu somos estrangeiros nessas terras da Península Ibérica, uns com mais anos de adaptação e já conhecidos da paisagem, como o javali. Sim, ele enfrenta novos desafios em busca de alimento e da sobrevivência, em meio à culpabilização pelos desequilíbrios ambientais, como o “excesso” de população e a busca por comida em locais onde antes não entrava, como nos quintais das famílias. O eucalipto, um pouco mais recente, mas já parte importante da economia possui uma indústria nacional e internacional fortíssima, que dita muitas políticas econômicas, e contribui para a crescente fragilização das políticas ambientais. Eu sou a mais recente dessa leva estrangeira, com algumas experiências de campo no Brasil e em busca de entender como as conexões entre florestas antropogênicas ocorrem em solo português e como o fogo tem moldado os espaços rurais do interior da porção continental do país. Somos três desterrados inseridos no território português.
A convivência entre espécies tão distintas, a inclusão, simbiose, parceria e, também, relações de força, de predação, mas naturais, fazem parte das complexas cadeias em sistemas agroflorestais diversos e equilibrados, que parecem estar cada vez mais no cerne das questões e discussões sobre um retorno ao holoceno e à (re)constituição de florestas antropogênicas. Imaginar novos velhos mundos possíveis é imaginar o retorno da biodiversidade, da diversidade humana, das formas distintas de ser e estar no mundo, de locais com sistemas mais habitáveis para o maior número possível de espécies, numa convivência de parceria e equilíbrio, com cadeias de vida mais conectadas. Imaginar e buscar um mundo inclusivo e diverso, onde o javali não seja uma praga e onde o eucalipto não seja o culpado pela paisagem em ruína.
Juliana Ardenghi (ISCSP-UL)
Quando vou ao supermercado, observo onde os alimentos são expostos e o comportamento das pessoas que por lá circulam. Percebi que, aqui em Portugal, tanto o açaí quanto a tapioca estão presentes em três corredores no mesmo supermercado: nos alimentos típicos do Brasil, nos alimentos livres de glúten e lactose, e nos alimentos considerados saudáveis. O açaí e a tapioca têm profundas raízes culturais no Brasil, tradicionalmente consumidos pelos povos indígenas, que os apresentaram aos colonizadores portugueses. Tornaram-se alimentos populares primeiramente no Norte do Brasil, região de maior produção, e atualmente são consumidos em todo o Brasil. Ganharam popularidade em Portugal nos últimos anos, principalmente em Lisboa, onde a comunidade brasileira é muito significativa. Através das minhas observações surge uma pergunta: Qual a importância desses dois alimentos na dinâmica social dos imigrantes brasileiros? Assim, iniciei uma das linhas de pesquisa do meu doutoramento em ciências da sustentabilidade.
Percorrendo as ruas de Lisboa, deparei-me com áreas repletas de turistas, bairros residenciais, esplanadas e quiosques em jardins, além de locais de street food. Notei um constante apelo para o consumo de açaí e tapioca em todos estes lugares, incluindo ao entrar ou sair do metrô. Neste percurso, o bairro de Arroios chamou minha atenção, tanto pela quantidade de brasileiros circulando pelas ruas, quanto pela quantidade de restaurantes, cafeterias e mercados com produtos brasileiros.
Iniciei minha exploração pela Rua de Arroios em direção à Praça do Chile. Parei em frente a um restaurante onde havia um letreiro escrito com a seguinte grafia:
WAFFLE, ACAI, OMELTE, CAMARÃO
Pensei: que mistura de alimentos de diferentes culturas! Na porta estava Sandra. Perguntei se o restaurante era brasileiro: “Não, o dono é de Bangladesh, nunca vi açaí aqui, pergunte ao dono, está ali sentado e só fala em inglês”.
Me apresentei e falei do meu estudo. Perguntei se vendia açaí; ele balançou a cabeça negativamente. Em seguida, perguntei se ele conhecia o açaí; a resposta foi não. Ainda mais curiosa, perguntei por que estava escrito “açaí” na entrada do restaurante; a resposta foi um sorriso constrangido. Sorri e falei: “Não há problema, estou apenas curiosa. O senhor escreveu ‘açaí’ como marketing, assim os clientes se interessam?” Após um breve silêncio, ele respondeu que sim. Saí refletindo: será que o açaí se tornou uma food trend em Portugal?
Na porta do restaurante, Sandra me esperava sorrindo: “E aí, vende-se açaí aqui?”. Respondi que não. E assim iniciei meu primeiro contato com uma imigrante brasileira que trabalha em um restaurante que supostamente vende açaí, mas que na verdade não vende, e nem é brasileiro, sendo Sandra a única representante do Brasil. Veio de Maceió, capital de Alagoas, região Nordeste. Trabalhava como assistente social e chegou a Portugal há um ano:
“Gosto de trabalhar aqui, imagina só, iniciei o curso de medicina, mas tive de interromper pois engravidei, não consegui conciliar a medicina com filhos e casamento. Assim, optei por ser assistente social e agora em Portugal, garçonete.”
Olhei para Sandra e, como mãe, a empatia foi imediata; escolhas para equilibrar nossas vidas sempre estão presentes.
Minha próxima parada foi em um mercado chamado “Mercado Tropical”. Entrei e dei uma olhada nos produtos. Nas prateleiras, encontrei farinhas de tapioca de marcas do Norte e Nordeste brasileiros, diferentes das que encontramos nos hipermercados. Os cartazes com propaganda de açaí estavam espalhados ao fundo da loja. Vejo pessoas entrando e já falando com as funcionárias na maior intimidade. São clientes assíduos.
Ao fundo, ouço uma música de louvor que reconheço como típica de religiões evangélicas do Brasil. Kaeyt, uma das vendedoras, vive há três anos em Portugal. No Brasil, era técnica de enfermagem. Disse-me que quando chegou a Portugal, trabalhou como faxineira:
“Era o que dava. Minha profissão nem existe aqui, e será difícil exercê-la. Estou feliz, vivo aqui perto, eu já era cliente, telefonei para a dona e há um ano estou aqui. Tenho qualidade de vida, como no Brasil, mas agora estou cá em Portugal, feliz pois acho que Deus sabe nos direcionar.”
Quando lhe perguntei sobre a música, entra um cliente, amigo de Kaeyt, com uma bíblia na mão: “Aqui iniciamos o dia escutando louvores, transmite bondade a todos”.
Observo que tanto os funcionários quanto os clientes do mercado sentem-se incluídos e pertencentes à dinâmica do bairro, por estarem em um local que representa sua cultura.
Continuo minha caminhada e me deparo com um restaurante típico do Brasil. Nas portas, cartazes de um concerto de forró, música típica do Nordeste brasileiro. A atmosfera nos remete ao Brasil. A música, a decoração colorida, o cheiro dos temperos, o idioma. A maioria dos clientes são brasileiros. Na mesa mais animada estão quatro mulheres, muito alegres, falando em inglês. Uma delas come uma deliciosa tapioca recheada com carne de sol. A garçonete me recebe sorrindo. Seu nome Yasmim, 19 anos, brasileira de Belo Horizonte, Minas Gerais. Yasmim chegou há dois anos. Quando imigrou, ficou muito triste. Estava na adolescência e era muito feliz com tudo que vivia. Sua mãe veio para refazer a vida após separar-se de seu pai.
Fiquei muito triste quando cheguei em Portugal, pensei que não fosse me adaptar. Hoje em dia, não me vejo morando no Brasil novamente. Estou muito bem, trabalho em um lugar com pessoas do meu país, encontrei tudo aqui, comida, música e amigos. Sinto-me acolhida.
Após percorrer o bairro de Arroios, minha sensação é de que encontrei amigos. Minha perceção é que os mercados e restaurantes típicos brasileiros oferecem um passeio sensorial único, são locais onde os imigrantes sentem-se incluídos e acolhidos socialmente. Nestes locais não se trata apenas de vender produtos, mas sim de um pedacinho do Brasil em Lisboa.
Carolina Ribeiro Araujo (ISCSP-UL)
Chegamos ao rio Tejo, ele olha e solta uma palavra singela: bonito. Conclui: aqui começou a desgraça. Rimos, seguidos por um silêncio reflexivo: pensar que aquele espaço foi palco de um acontecimento que afetou aquelas pessoas. E quem são elas? Um jovem casal indígena do povo Noke Koi. Do coração da floresta amazônica, direto para a concretude de Lisboa, local de onde saíram as naus rumo às “novas terras”. Terras essas já habitadas pelos ancestrais desse casal.
Agora aqui, depois de terem sobrevivido às perseguições da igreja, exploração das seringas e pressão do agronegócio, eles chegam como protagonistas de um movimento importante: a cura da civilização. É o que ele responde quando lhe pergunto o que os motiva a atravessar o oceano. Para os Noke Koi, é muito importante disseminar sua cultura e suas medicinas sagradas para mais e mais pessoas. O intuito é curar, cuidar da mãe natureza e criar um mundo que funcione para todos, incluindo os mais-que-humanos. Para eles, isso não é um lazer, nem mesmo uma fonte de renda tão promissora quanto parece; é um trabalho, bem parecido com uma profissão. Assim como os não-indígenas estudam e se formam na escola e na universidade, esses indígenas também passaram por ensinos e práticas de anos — com dietas, restrições e provas — para serem capazes de conduzir eventos culturais e noites de cerimônia com as medicinas da floresta, seus rezos, cantos, pinturas, tambores e maracás — e tudo mais que envolve esse universo espiritual da prática ancestral dos povos originários da Amazônia.
O “caminho da Floresta” para chegar a Portugal é o mesmo — em sentido contrário — percorrido pelas naus de séculos passados. Ainda que muito mais rápido e seguro, sair da aldeia ainda é uma aventura de múltiplas modalidades: tem barco, tem carro, tem ônibus e tem avião. E chegam a esse território longínquo e marcado por precedentes tão profundos. Sempre há um estranhamento comum quando se fala em xamanismo amazónico em Portugal. Parece um contrassenso: a mesma nação que no passado chegou a terras indígenas com imposições, exploração e desrespeitos comuns à colonização agora está a receber esses povos e experienciar seus conhecimentos. É verdade que essa prática ainda permanece no underground da sociedade – devido à falta de regulamentação das suas medicinas, e aos preconceitos comuns à falta de informação – não é algo comentado nem divulgado a pessoas indiferentes, mantendo-se num circuito específico de pessoas interessadas.
Mas mesmo que numa via “paralela” da sociedade tradicional portuguesa, não se pode menosprezar esse movimento que acontece aqui na Europa. Amplia-se a territorialidade cósmica da floresta, recebendo, através da presença e rezos dos indígenas os encantados, os espíritos da natureza nas terras, ou melhor, nos cosmos lusitanos. Quem vem vivenciar esse fenômeno são pessoas com suas buscas internas e íntimas, que se abrem para esse conhecimento confiando no saber dos indígenas. No final, o sentimento de gratidão parece emanar do semblante de cada participante. Independente do idioma falado, todos parecem se comunicar com olhares de bem-estar e vida.
Para os líderes espirituais nativos, a presença de cada pessoa também é recebida com gratidão. Eles expressam a importância daquele momento para o fortalecimento de suas culturas, seus saberes e seu povo. Nessa oportunidade, eles são ouvidos, eles são os protagonistas. É uma legitimação serem reconhecidos e incluídos por aquelas pessoas.
Então, de um lado, tem os saberes e, do outro, aqueles que querem aprender; de um lado há os curandeiros e, do outro, aqueles que querem se curar. Com esses dois polos complementares, não é difícil fazer a troca acontecer; para isso, existe o fio condutor: são pessoas que facilitam a vinda dos indígenas e organizam os eventos, a divulgação e todas as demandas para fazer acontecer. São eles também que cuidam para que os participantes estejam seguros e bem informados. Em geral, os organizadores são militantes da causa indígena e ambiental. Por considerarem os indígenas guardiões da Amazônia e acreditarem que suas medicinas são ferramentas para transformar a sociedade, se engajam na construção dessa ponte Amazônia-Portugal, valorizando e incluindo o conhecimento e práticas indígenas na programação de verão.
Ainda que toda essa narrativa da interação e diálogo entre a cultura indígena com o ocidente pareça ser mais saudável e justa do que no passado, não se pode desconsiderar a tendência comum da globalização: a de mercantilizar saberes, o consumismo por modismo e quiçá a perda da essência. Talvez isso também faça parte desse diálogo, e tudo continua bem se os indígenas usarem relógios e os não-indígenas usarem artesanatos. O que importa nessa conversa é que ninguém quer falar mais alto e todos estão sendo ouvidos e incluídos.
Daniel Oliveira (NOVA-MARE)
A paisagem do Capitaloceno é caracterizada por um tapete de contradições e desequilíbrios, e é esta a paisagem que eu pretendo pintar. Gosto de pensar através de uma base pluriversa, um conceito que desafia paradigmas dominantes e promove uma visão de coexistência e respeito pelas diversas formas de ser e conhecer. Ao enfatizar a complexa teia de relacionamentos entre humanos, não humanos e seu ambiente, dialogo por uma mudança transformadora em direção a uma compreensão mais inclusiva e pluralista do mundo.
É justamente esse sistema do capital e da exclusão que nos pinta esse cenário de crise social e ecológica global. Entre partes dominantes e dominadas cria-se o quadro do Antropoceno – ou, para não cairmos na falácia da “natureza humana”, o quadro do Capitaloceno. Neste quadro, vemos uma paisagem complexa, assim como a Lagoa de Albufeira, em Portugal. Se observamos sem atenção, de fora, somos logo fisgados pelo romance da paisagem. Há a esperança em tons de verde e a nobreza em tons de azul, que mascaram outras camadas menos positivas ao olhar. E essa paisagem se repete e repete e repete… De um lado beleza, boas lembranças, áreas “naturais” protegidas, esportes, tranquilidade… De outro, lixos espalhados pelas esquinas, excesso de automóveis, má qualidade da água…
Mas como poderia eu, sozinho, pintar uma paisagem tão complexa quanto a da Lagoa de Albufeira? Não nasci nem cresci ali, muito menos tenho lá casa – quem me dera. Nasci e cresci bem longe, lá nas serras de Minas Gerais, no Brasil. Só conheço a Lagoa há sete anos, mas me apaixonei de tal forma por aquela paisagem que já me sinto parte dela. Minha paixão surgiu logo. No primeiro encontro comparei a Lagoa com a Bahia, Estado brasileiro que eu tanto amo. O encontro daquele corpo de água interior com o mar, da água doce quente com a água salgada fria na correnteza das trocas de água. O extenso areal e a possibilidade de contornar toda a Lagoa até encontrar o lugar mais convidativo para diversão e relaxamento. Sem mencionar a ausência de bares e restaurantes na orla, que dão à paisagem aquela sensação de não-urbana. É uma paisagem de uma beleza indescritível, especialmente para os visitantes, que contemplam a vista diante deles, com olhos fixos no que nos traz alegria.
Eu, pelo meu percurso de vida, me tornei um crítico do espaço. Crítico, pois procuro ter um olhar atento aos múltiplos símbolos que uma paisagem me apresenta. Foi assim que, também no primeiro encontro, reparei na quantidade de lixos nas ruas, na quantidade de automóveis que estacionavam onde não deveriam e nos quadriciclos que circulavam na orla da Lagoa. Nesse primeiro encontro fiquei curioso e eu já sabia que iria tentar desvendar essa paisagem.
Essa paisagem periurbana tem sofrido um intenso processo de urbanização. Muitas novas casas estão sendo construídas, muitas delas por pessoas de outras nacionalidades que veem na área uma boa oportunidade para construírem suas casas de veraneio e segundas habitações. Alguns moradores veem as mudanças como um progresso, enquanto outros lamentam a perda da tranquilidade e identidade local. A paisagem vai se transformando de maneira rápida e o aumento dos lixos nas esquinas das ruas é absurdo. São lixos de obras, mas outros mais, de todo o tipo, que se amontoam mesmo fora dos caixotes de lixo. Muitos moradores expressam frustração com a falta de infraestrutura adequada para lidar com esse aumento de resíduos, refletindo uma tensão entre o crescimento desordenado e a capacidade de manutenção do lugar. Ao escutar a comunidade, percebe-se que a identidade cultural local tem alterado, dando vez a um lugar passageiro, de verão. As festas comunitárias de abertura da lagoa ao mar, em que as comunidades locais se ajuntavam para abrir a faixa de areia com pás, já não existem. A abertura agora é feita por grandes máquinas e da responsabilidade da Agência Portuguesa do Ambiente, que não faz nenhuma ação para a inclusão da comunidade nesse processo. As celebrações tradicionais, que serviam como rituais comunitários, estão se tornando memórias distantes, substituídas por processos mecanizados sem o mesmo significado simbólico. A transformação muda a paisagem física, mas também o tecido social e cultural, imprimindo uma nova dinâmica ao local que outrora era mais coeso e tradicional. Hoje, a paisagem reflete as complexidades e contradições de uma modernidade que avança, muitas vezes, sem olhar para trás.
Porém de que adianta minha visão sobre esta paisagem? Em quê a minha visão, solitária, de quem vem de fora, poderia contribuir para melhorar estas condições de desequilíbrio que eu havia observado? Trazer a minha visão sobre um lugar que não é meu e tentar impor essa verdade através do conhecimento científico não contribui para a construção de uma paisagem dividida e excludente? A ciência e a educação não devem ter o papel contrário? O de incluir os diversos conhecimentos e criar um conhecimento comum que possa contribuir para problemáticas de base local? Desde o início de meu percurso académico e profissional que trabalho sempre com as comunidades, nunca para elas. E se eu quero uma visão das complexidades da Lagoa, inevitavelmente tenho de trabalhar com os habitantes locais. Tenho de escutá-los, sejam lá os moradores mais recentes – muitos de outras nacionalidades – ou os mais antigos, além dos mariscadores e até mesmo os turistas. Vou percebendo que a comunidade local na verdade é composta por várias comunidades. Uma identidade local em transformação. De um passado dominado pela pesca e caça a um presente que tem se destacado pela quantidade de lixos espalhados pelas ruas, cada vez com mais casas, menos árvores e um sentimento de comunidade em declínio. Motivados por este meu projeto de doutoramento, eu e alguns moradores criamos um grupo que chamamos de “Lagoa de Albufeira Sustentável – Conversas e Ações”. Temos tentado incluir o máximo de pessoas, e atualmente somos 16 sonhadores se conhecendo e buscando co-construir práxis para uma Lagoa sustentável. O grupo tem em sua maioria mulheres e nem todos são moradores atuais da Lagoa. Dois dos membros, inclusive, moram em outros países, mas têm o interesse em colaborar para tornar a Lagoa uma paisagem mais sustentável. Três são nacionais de outros países, mas moram na Lagoa atualmente, e gostariam, principalmente, de resolver a questão dos lixos depositados fora dos contentores, mas também de poder conhecer melhor a comunidade. As aspirações dos membros por vezes são distintas, a depender da relação de experiência individual com o lugar. E, através de um movimento dialógico, cada uma dessas vozes contribui para a criação de um conhecimento comum, em que todas as partes tornam-se fundamentais para que haja equilíbrio e sustentabilidade do lugar.
A paisagem do excluído é escrita como uma ode a uma pedagogia da inclusão, inspirada nos ensinamentos do educador brasileiro Paulo Freire, especialmente naqueles da sua obra principal Pedagogia do Oprimido e na subsequente revisitação dela em Pedagogia da Esperança. Um desabafo pretensioso para que não nos esqueçamos da outra voz, da outra opinião, da outra vida e da outra natureza. A ciência e a educação carregam consigo essa responsabilidade. Através de uma pedagogia da inclusão, podemos vislumbrar um mundo menos desigual, um mundo onde a dominação dos seres e dos recursos não seja um objetivo, e onde, coletivamente, possamos construir paisagens equilibradas. É através da inclusão que podemos abrir espaço para novas vozes, novas epistemologias e novas cosmologias que nos convidem a repensar nossas relações com a cultura, o ambiente e os recursos que nos rodeiam, gerando sementes de esperança por uma era de maior bem-estar sócio-ecológico.
Luísa Coutinho (IELT, NOVA-FCSH)
“Começando pelo meu pai… natural d[a], Beira Alta, sei que cursou o seminário. Faltava pouco para ser padre, [mas teria abandonado o seminário] por causa de uma paixão que teve… Rumou para África.
Esteve em vários países, onde fez fortuna e onde teve azares. O último [desses países] foi a República Democrática do Congo.” (Entrevista do meu pai, fevereiro de 2024)
Desde criança que a narrativa do meu pai sobre o meu avô paterno ter ido para o Congo e lá vivido, como reproduzo neste trecho, tem feito parte do meu imaginário. Impressionou-me a ida do meu avô da sua terra natal, uma aldeia do distrito de Viseu rumo a um continente desconhecido e a um país tão diferente. Admirava o que considerava ser o seu espírito de aventura e a coragem de ir ao encontro de outros povos, outras paisagens, outros mundos. Esta narrativa tem estado sempre presente na minha vida, ora de forma mais marcante ora de forma mais leve. Com o tempo e ao aprofundar esta história familiar, o meu interesse foi tomando a forma de um projeto de investigação. A partida do meu avô de um mundo conhecido para mundos desconhecidos, assim como as diferentes origens do meu pai que daí resultou e as formas como são percecionadas, são o motor do meu interesse e posteriormente da minha investigação. Estas questões fazem ressoar em mim a experiência marcante que vivi em Timor-Leste, de coexistir no mesmo tempo e espaço com habitantes locais que viviam realidades tão distintas da minha.
Pergunto-me como foi para o meu avô o encontro com os congoleses em geral e com a minha avó em particular. O conhecimento de que os portugueses ocupavam o segundo maior contingente populacional não indígena, a seguir aos colonizadores belgas, levou-me a incluir na investigação o estudo das relações entre portugueses e congoleses no Congo, as dinâmicas com os belgas, perpassando as últimas décadas da colonização belga e as primeiras décadas da independência do Congo. Interessa-me aprofundar os encontros e desencontros operados nessas dinâmicas relacionais entre portugueses e congoleses no Congo, mas também em Portugal na atualidade. A investigação tem por base as memórias de portugueses que viveram no Congo e que regressaram a Portugal, e dos testemunhos de emigrantes congoleses que vivem hoje em Portugal, e parte da narrativa da minha família luso-congolesa no Congo, em Portugal e na Bélgica. A partir de histórias pessoais também analiso as relações luso-congolesas em Portugal e belgo-congolesas na Bélgica que contextualizam a minha narrativa familiar. Na Bélgica vivem vários parentes paternos próximos.
A investigação enfatiza as memórias sobre o meu avô que emigrou para o continente africano e que durante 40 anos (1917-1957) percorreu África, fixando-se nos últimos 20 anos no Congo. O meu avô, português, teria cerca de 50 anos quando se encontrou com a minha avó, congolesa, que seria cerca de 30 anos mais nova. Dessa relação nasceram dois filhos: o meu pai e a minha tia. O meu avô era proveniente de uma casa beirã não abastada e a minha avó de uma casa aristocrática congolesa, cujo poder era herdado pelo primogénito por via matrilinear, de acordo com as narrativas do meu pai. As memórias do meu pai permitem-me conhecer a sua perceção sobre a história de vida dos meus avós e também do meio envolvente. Sempre me fascinou esta dupla origem (ainda que todos tenhamos múltiplas origens dos nossos ancestrais), a interligação de mundos diferentes e a multiplicidade de experiências numa mesma pessoa, assim como as subjetividades que daí advêm. Seduz-me também a memória da proximidade a uma Natureza mais virgem, mais rica e colorida, que potencia vivências tão diferentes das da sociedade ocidental tão pouco natural.
“[A] minha irmã e eu vivíamos com o meu pai numa casa de colmo…
Era uma região pitoresca com miríades de borboletas, de várias cores e tamanhos, e lembro-me, também, dos ninhos de vários formatos que os pássaros teciam nas palmeiras. A floresta era densa com a particularidade de, em certos pontos, a luz do sol não penetrar.
Tínhamos também uma casa em Lomami, do outro lado do rio, e lembro-me de os elefantes passarem perto em grande vozearia e derrubando pequenas árvores, o que nos enchia de medo.” (Entrevista do meu pai, fevereiro de 2024).
A trajetória da ida e a permanência do meu avô no Congo faz-me refletir, em primeiro lugar, sobre a emigração para o Congo, no contexto da rede migratória existente de portugueses para esta colónia belga, nomeadamente provenientes da Beira Alta. Em segundo lugar, o encontro entre os meus avós de diferentes países, culturas, classes e idades suscita o meu interesse analítico em termos inter-geracionais, inter-culturais, etno-linguísticos à luz das categorias de multiculturalidade, de relações de poder, de género e de (a)racializações.
A vivência do meu avô no Congo, comparativamente à da minha avó; a trajetória do meu tio, primeiro filho do meu avô e meio-irmão do meu pai, filho de pai e mãe portugueses, que foi trabalhar para o Congo em sociedade com o meu avô e depois lhe sucedeu nos negócios, que também teve filhos com uma mulher portuguesa e depois com uma mulher congolesa, em comparação com a do meu avô; a experiência do meu tio no Congo antes e depois da independência e em Portugal, enquadrando-a nas narrativas coloniais e da independência no Congo; a vivência do meu tio no Congo e na Bélgica relativamente ao percurso do meu pai no Congo e depois em Portugal, despertam a minha curiosidade e permitem ver o que há de comum e de diferente nestas trajetórias.
Tenho refletido sobre o que representa, na perspetiva do meu pai e na minha, vivermos no encontro entre duas origens e diferentes experiências, e quais os nossos posicionamentos de pertença identitária e de (a)racialização, que quero aprofundar.
Nesta investigação cruzo Antropologia e História, estudo das migrações, estudos da memória, memória vivida e mediada, narrativas biográficas e familiares, entrevistas, observação participante e pesquisa de arquivo multissituadas em Portugal, no Congo e na Bélgica.
Interessa-me perceber os encontros, conexões e entendimentos entre os sujeitos dentro das suas intersubjetividades, assim como refletir sobre a escrita etnográfica como inclusão de conhecimentos, disciplinas e subjetividades de narrativas. Sob a égide da inclusão, também pretendo integrar a análise das exclusões, contradições e desequilíbrios ao estudar as interações entre as comunidades portuguesa, congolesa e belga.
Duygu Cihanger Ribeiro (METU)
It wasn’t hard to notice the man holding a clear file with some official papers in it when I was going to visit the Martim Moniz square for the first time in early November 2023. The green metro line of Lisbon, heading in that direction, is filled with people from different nationalities, which is a shallow but still an obvious judgment based on their appearances. The man was one of them, just happened to stand near me. I just had a glimpse at his papers and saw one word: “identity”. I did not give it much thought at that moment; yet I noticed the same “man in the metro” looking around as I ascended the stairs to the square. From the way he looked around, I remember thinking, “he is going to meet with someone, but the square must be very large and confusing for him to decide where and how”. This was a mundane and quick thought, and I was already on my way to this (in)famous square I had been hearing a lot about since moving to Lisbon. Martim Moniz square was very crowded, mostly occupied by men, and the surface, left completely exposed, was reflecting the last drops of autumn sun. This was simply a typical example of a public square, with its straight lines, large scale, and rather dull landscape elements with a very complicated history of planning, design and social use. Later on, a second-generation migrant I had a chance to talk to, said:
“I used to go to Martim Moniz and hang out there a lot as it is very close to my work, but after they removed the kiosks ‘we’ don’t go there anymore, I just walk around it.”
Here, the mention of the former and highly debated “kiosks” as the physical elements in the square, and the focus on “we”, simply bring together two interrelated dimensions of public spaces: spatial and social. Public spaces as the sites “where strangers bear” or meet one another, as Hannah Arendt states in The Human Condition, are one of the first topics any urbanists would discuss. This perspective comes from traditional discussions on what makes a city, highlighting the dualities between inside/outside, local/stranger, public/private, and inclusion/exclusion (Vaiou and Kalandides 2009). Being an urbanist myself, it was important to notice this significant urban site, representing a top-down planning and design decision making process, which is mostly about power and visibility.
However, in this seemingly typical public square, life was flowing differently from the rest of the city. Lisbon, with its tourist attraction sites nearby this area, such as Avenida da Liberdade, Rossio, and Baixa, is familiar with different nationalities swarming in these central areas. In and around Martim Moniz, there are numerous groups of people coexisting as well, but not as tourists. Another thing that attracted my attention is how run down this public space is compared to the neatly paved little corners and freshly cut trees in most of central Lisbon. The pavements were damaged, and the small pool on the southern edge of the square was full of garbage. This physical degradation is not hard to deal with; it is a concrete problem tied to the city’s budgetary constraints.
There are several resources on how to physically and socially improve public spaces (Carmona et al. 2003). But although the social dimension is almost always presented as a design category, can a design manual truly capture the spontaneities, pluralities, and ever-changing rhythms of everyday life? Is it feasible to encompass all the human agency that intersects with a square? These hardships in design usually make the user dimension an aftermath. For instance, in the current reality of Martim Moniz, how would you design a public square that serves as a home for many homeless people, refugees, newcomers, and all the other “marginalized” groups? Instead of posing questions, urbanism offers ready-made answers, with methods that aim to foster inclusivity for all. These tools create flexible and welcoming spaces that accommodate diverse genders and abilities, achieved through accessible, experiential, and event-based areas. However, I cannot stop but think: When there is an attempt to include, don’t we already start to exclude?
My research aimed to observe and analyze migrants’ use of public spaces in Lisbon and its multicultural dimensions. As a migrant myself in this city, all the predefined research framework started to dissolve once the everyday reality of the research site presented itself. Besides observing the users and the space, there are still city officials, migrant associations, art collectives, and experts to talk with and learn from. However, the temporality and fluidity of the urban rhythms presented nothing less than a complexity, even a “chaos that is yet to be deciphered”, quoting a beautiful passage from the novel The Double, by José Saramago. Several migrants I had the chance to chat with expressed their content about Portugal and Portuguese: “They are very calm people”, one of them says, “as long as you don’t get on their way”, the other adds. Mostly positive notes I collect, nothing about the pressing housing issue or the low salaries and harsh working conditions. The absence of critical and political comments created a stark contrast between what I see in front of my eyes and what I am being told.
With the fleeting realities and contrasts between theory and everyday life, my research methodology altered from making maps of the neighbourhoods reflecting diversity in Lisbon to looking for counter maps; from conducting in-depth interviews to collecting informal notes, and from making pre-assumptions to letting the space reveal its dynamics over time. As I was completing my tour around the square that first day, I happened to see “the man in the metro” one more time. He was not far from the metro exit, facing two men, one of whom checking his papers in the clear file. Is this a formal meeting? Are these people helping the man to apply for a residence permit, or is it simply a job application? Or is he trying to leave the country? In reality, all these questions might be irrelevant to this abstracted example. Nevertheless, Martim Moniz is a site that makes you think differently and to question the public space patterns as you know them. This is not a public space where “strangers” meet; rather it is a place where strangers come together and never (want to) meet.
Leonor Rosas (ICS-UL)
As estátuas povoam as nossas cidades. Apesar de já antes existirem estátuas no espaço público, é desde o século XIX — particularmente da segunda metade — que, por toda a Europa, pelas praças, ruas, jardins públicos e avenidas, homens de pedra começaram a despontar a um ritmo frenético. Reis, governantes, figuras míticas, escritores, soldados. Serviam de materialização para a eternidade da nação e dos seus heróis, do império e das suas conquistas ou dos feitos artísticos de um povo. Através da sua materialidade imponente, procuravam-se solidificar nações e impérios. Para os que estavam (e estão) excluídos destas grandes narrativas modernizadoras, as estátuas representam, nas palavras de David Harvey, a dominação simbólica. Lefebvre chamou-lhes atos de colonização espacial. Estudar estátuas é ler narrativas fortes que dominam o espaço e os imaginários, mas é igualmente ler ausências e exclusões daqueles e daquelas cujas histórias não cabem nos moldes destes grandes homens de pedra. Estas estátuas, particularmente visíveis em momentos de construção, destruição ou contestação, no entanto, vivem sempre ao nosso redor. Fazem perpetuamente parte do cenário em que se desenrolam as nossas vidas, participando da eterna repetição da performance do quotidiano. Neste texto, procuro desenhar uma etnografia de todos os dias junto das estátuas coloniais lisboetas.
Sento-me numa mesa do quiosque do Largo Trindade Coelho e observo a estátua do Padre António Vieira. Apercebo-me rapidamente de que, ao começar a etnografia, transformo o meu olhar no ponto de vista da estátua. Observo o missionário português, Padre António Vieira, do cimo do seu pedestal, de cruz em riste, descrito numa placa na sua base como “defensor dos direitos humanos”. Foi esculpido com pequenas crianças indígenas seminuas à sua volta. Inaugurado em 2017, foi alvo de pinturas anticoloniais em 2019 e 2020. Esteve no centro de intensos debates sobre a forma como lembramos a história colonial portuguesa. No entanto, neste momento, observo-o como um símbolo colonial e racista que se torna parte do cenário do dia-a-dia de lisboetas, transeuntes e turistas. Para lá dos momentos de intenso debate, como vive uma estátua no seu dia-a-dia? Com quem interage e a quem afeta? Quem é que a ignora ou a vê?
Proponho-me, então, a reformular o título da obra de James C. Scott, Seeing Like a State, e a transformá-lo em Seeing like a Statue para os propósitos desta etnografia. As estátuas tendem a contemplar-nos com postura sempre altiva, de cima dos seus pedestais, geralmente em posições de glória. O que diria a estátua do Padre António Vieira se descrevesse o que a rodeia? Talvez: observo que à minha frente passam turistas, grande parte deles tendem a ignorar-me. E ainda: observo uma visita de estudo de dezenas de crianças que chega e ouço um guia da Santa Casa da Misericórdia gabar as minhas virtudes como humanista e escritor. Regresso a mim, à etnógrafa, ouço uma professora de português que, ao ver-me a observar atentamente a estátua, comenta que hoje as pessoas querem criticar tudo. Já de noite, a estátua poderia observar: pessoas encontram-se à minha volta depois de regressarem de bares e discotecas, sou um ponto de encontro para quem espera os amigos ou se senta nos degraus à minha volta à espera de um uber. Noutros momentos, esta estátua recebe também visitas guiadas alternativas, que a apontam como símbolo violento do lusotropicalismo que permanece tão vivo. Esta estátua ouviria guias turísticos a surpreender a audiência com a informação de que foi construída em 2017. “But that was only 5 years ago? Who authorized such a thing?”, poderia a estátua ouvir numa visita da African Lisbon Tour em março de 2022, vindo de uma turista norte-americana indignada.
Do topo daquela espécie de rampa, o Infante Dom Henrique contempla o horizonte e o Tejo. Está muito acima de qualquer uma de nós, empedernido nos seus desígnios imperiais. Se se dignasse a olhar para baixo, veria milhares e milhares de turistas que, dia após dia, visitam a zona de Belém. O infante surge acompanhado de Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Bartolomeu Dias, Fernão de Magalhães e Diogo Cão. Estes homens, construídos para a Exposição do Mundo Português em 1940 e tornados definitivos em 1960, estão de costas para a rosa-dos-ventos que se lhes antecede. Curiosamente, um presente da África do Sul da época do Apartheid, nas comemorações de um dos centenários henriquinos. Já por duas vezes estes homens foram alvo de pinturas anticoloniais. Este monumento, composto por “descobridores”, é o locus central da memória imperial e lusotropical na cidade. Neste espaço de Belém, observo que todas as estátuas e monumentos dialogam uns com os outros, interpelando e criando diferentes significados com os marcadores da história à sua volta. Estes homens de pedra parecem dialogar com os brasões da praça do Império, com o controverso Memorial dos Combatentes ao Ultramar, e com o espírito lusotropical renovado no final do século XX no Centro Cultural de Belém. Todos se juntam numa performance de poder na qual cada um tem o seu papel a desempenhar. Ando à volta do Padrão e observo as pequenas bancas que vendem comida e bebida que se foram montando à sua volta. Sob aqueles homens de pedra, ouve-se falar em tantas línguas. Numa tarde de etnografia identifiquei visitas em inglês, espanhol, francês e mandarim. Contrariamente a outras estátuas, estas são alvo de perpétua atenção. Para lá dos turistas estrangeiros, vejo grupos de turistas nacionais que ali passam. Vêem-se igualmente visitas de escolas com dezenas de crianças. Ouço um pai dizer ao filho que dali partiram barcos que descobriram o mundo. Uma pesquisa nas redes sociais leva-me a encontrar dezenas de fotografias de utilizadores do Instagram que posam com estas estátuas atrás de si. Olhando por estas estátuas e como elas, vemos um mundo de turistas frenético, de fotografias e selfies, de visitas guiadas e de utilização das suas histórias mitológicas (ou até mesmo ficcionais) para vender uma Lisboa persistentemente imperial.
Uma etnografia de estátuas, feita através do seu olhar, é simultaneamente uma etnografia da performance do dia-a-dia, da forma como a memória se solidifica nos cenários das nossas vidas e, fundamentalmente, de como o património pode operar a exclusão e a inclusão.
Maria Concetta Lo Bosco (ICS-UL)
Meio-dia. Chego à entrada do jardim Fernando Pessa com alguma antecedência e passeio por aí dentro até encontrar um banco vazio onde me sentar. É neste jardim de bairro, rodeado por prédios e, assim, protegido dos ruídos do trânsito da Avenida de Roma, que o Sérgio (nome de fantasia) decidiu encontrar-me para uma conversa informal. “É um lugar confortável”, escreveu-me, “e fica perto do trabalho, dá para aproveitar a pausa do almoço; o trabalho anda sempre a correr. Quem não está nessa?” Marcar um encontro informal com os meus potenciais interlocutores antes de solicitar uma entrevista é algo que costumo fazer durante o trabalho de campo. O jardim é de facto tranquilo, tem um quiosque, vários bancos e árvores para nos protegermos do sol a pino. O Sérgio pareceu-me entediado quando chegou, as suas mãos tocavam nervosamente o telemóvel, o casaco apoiado ora numa perna, ora noutra, os olhos pousavam em tudo à nossa volta. Palavra após palavra, percebi que mais do que entediado, o Sérgio estava preocupado: tinha uma entrevista para uma posição de programador informático com uma nova empresa agendada para o dia seguinte. Na empresa onde agora trabalha, muitos colegas falam ao telefone ao mesmo tempo, sinais sonoros de equipamentos e luzes piscam a cada segundo. O Sérgio não consegue comer com os colegas do trabalho, seja na empresa ou fora dela, daí o costume de almoçar no jardim: “Já basta o cheiro da minha comida”, diz-me sorrindo. Os estímulos sensoriais são desconfortáveis e híper-estimulantes para as pessoas neurodivergentes como ele.
De acordo com o edital do concurso, as tarefas na nova empresa não iam ser diferentes. Havia, porém, a possibilidade de teletrabalho, algo que seduzia o Sérgio, apesar de lhe provocar a sensação de trair a si mesmo. Fiquei confusa quando ouvi essa expressão. Não entendi a que o Sérgio se referia. Perguntei. Perante o fracasso de uma sociedade que não garante o acesso a lugares de trabalhos adaptados às pessoas com híper-sensorialidade, o Sérgio sentia que, optando por um trabalho home office, ele mesmo estava a validar a exclusão das pessoas neurodivergentes como ele no mundo do trabalho. Para ele, trabalhar na empresa significava desistir do seu bem-estar em troca de um salário, a falta de sentido daquela escolha já era demasiadamente evidente. A sensação de ser espremido, degradado, devorado pelo trabalho estava a levá-lo a contemplar a demissão, apesar de não ter melhores perspetivas ou um plano B, a não ser a entrevista de amanhã. O edital reportava também uma lista de características que iam ser usadas como critérios de avaliação dos candidatos: capacidade de concentração e de cálculo, execução de tarefas em tempos predefinidos. “Estas inclinações, ou competências”, comenta o Sérgio, “distinguem muitas vezes as pessoas neurodivergentes. Mas, em contrapartida, são vistas como valores exclusivamente económicos”. Na minha cabeça surgiu a imagem daquele homem barbudo de cabelos brancos e bigodes escuros, sentado de perfil, com a mão apoiada na barriga e uma lupa pequenina pendurada no pescoço. Devaneio! Voltei logo para o lado de cá. Comentei com o Sérgio que entendia o que ele estava a sugerir, mas não deixei de manifestar a minha perplexidade acerca da possibilidade de fugir das lógicas azedas do trabalho. Engaiolar e reduzir as nossas capacidades ou características em fontes de rendimento não foi e não continua a ser o jogo do mercado? Criar lucro e exclusão social.
Antes de nos despedirmos, combinamos um outro café para eventualmente gravar uma entrevista. No meu caminho de volta, ainda envolvida na conversa, gravei um áudio no telemóvel:
“É necessário continuar a trabalhar como se nada estivesse a acontecer? Ou temos de nos esforçar para repensar o espaço e o sentido do trabalho? Acolher o impulso de dignidade à vida. Ou o trabalho tornou-se, de modo inexorável, um fluxo perene de atividades que impede a quietude e a respiração? Sentimo-nos facilmente descartáveis, operadores descartáveis para a produção de bens e performances. É um esgotamento em massa que coloca todos numa encruzilhada. A maioria das empresas tem como único objetivo o lucro e a redução de custos. E então a precariedade ou a exclusão são narradas como flexibilidade. Será possível um trabalho que permita ir além da mera sobrevivência, que permita fazer planos para o futuro? Numa sociedade profundamente capacitista, a possibilidade de trabalhar e adquirir independência económica está excluída. É injusto que quem não se enquadra na norma seja considerado o único responsável pelo seu próprio destino, merecedor da sua própria condição, incapaz de aspirar a algo melhor. Se você não fizer um esforço para se incluir, ficará de fora! É isso que o Sérgio ouve todos os dias. Ainda acreditamos na fábula da normalidade, uma invenção do século XIX para dividir, classificar, excluir aqueles que não se assemelham à maioria. E obrigamos muitas pessoas a se esconderem, rotulando-as de problemáticas, incapazes, ou toleráveis desde que guardem o seu modo de vida para si. Vivemos numa sociedade em que o trabalho é requisito essencial para o direito à cidadania, em que a única forma de ser cidadão é através da participação no trabalho, não concebido como expressão de interesses, aspirações, capacidades pessoais, mas como um conceito abstrato ligado a uma ideia de produtividade obrigatória e padronizada que exclui, automaticamente, pessoas neurodivergentes. Para o Sérgio, amanhã será o dia de uma nova entrevista de emprego inacessível.”
José Vicente Mertz (ICS-UL)
Era o terceiro dia da marcha e, como de costume, paramos em uma pequena cidade do interior da Alsácia para pernoitar. Nosso caminho até aqui havia sido marcado por diversos confrontos entre os jovens curdos, que faziam de forma voluntária a segurança de nossa marcha, e alguns jovens da extrema direita turca, que nos perseguiam, lançando insultos e ocasionalmente algumas pedras. Em um dos conflitos, em uma pequena aldeia, cerca de dez jovens de cada lado se engalfinharam entre socos e pontapés, apesar dos gritos desesperados da comissão organizadora da marcha, que em vão dizia para que não cedêssemos a provocações.
No final daquele dia, ficamos na casa de alguns jovens curdos trabalhadores. Viviam seis em um pequeno apartamento, sempre movimentado devido ao entra e sai dos trabalhadores em horários desencontrados. Apesar de ser tarde da noite, insistiam que tomássemos chá preto açucarado e conversássemos, interessados em nossas vidas, nos nossos países e em como nos aproximamos da solidariedade curda. Como era o único que sabia algo de kurmanjî, fiquei na função de tradutor, principalmente para um companheiro de viagem indígena Aymará que estava comigo, ávido em querer saber mais sobre os curdos e vice-versa. Estes intercâmbios são comuns na Marcha Internacionalista Pela Liberdade de Abdullah Öcalan e Todos os Presos Políticos Curdos, esta a terceira em que eu participava, onde sempre trazem pessoas oriundas de diferentes contextos indígenas, em especial latino-americanos.
Quem fazia o papel de nosso anfitrião era o curdo mais velho entre os jovens, chamado Amed. Amed aparentava ter em torno de 35 anos, e sentava-se e dava ordens aos outros homens mais jovens, constantemente dando broncas, cobrando postura ou dizendo que não estavam a ser bons anfitriões. Entre os curdos, a “cultura da hospedagem” (mervanxanê) é um elemento central, pelo qu “ser um bom anfitrião” é objeto de grande orgulho. Amed estava particularmente maravilhado com o pouco de kurmanjî que eu sabia, o que se tornou um tormento para um jovem curdo que estava sentado em uma cama do lado oposto e que não sabia falar curdo, apenas turco. A língua curda é um dos elementos de demarcação étnica principal na relação antagonizada entre turcos e curdos, e talvez a principal forma de [r]existência curda frente à tentativa de assimilação do estado-nação turco, tão denunciada pelo movimento pela autodeterminação do Curdistão. Amed fazia de bom grado o papel de um pai severo para os outros rapazes da casa, então o fato de haver um brasileiro sem nenhuma ascendência curda falando kurmanjî serviu como um pretexto perfeito para uma longa e dura repreensão ao rapaz que não falava curdo sobre a importância de falar a própria língua.
Amed vivia há três anos na França, e orgulhava-se de não falar nenhuma palavra de francês. Questionado sobre o motivo, respondia rapidamente: vim aqui para trabalhar, não para falar. Quando perguntei se ele gostava da França, me respondia estalando os lábios naquele gesto tão comum entres os curdos quando querem demonstrar reprovação: “Não. Sou curdo, gosto do Curdistão, só penso em voltar para lá, o que infelizmente não é possível”. Esta suposta impossibilidade de gostar da França e do Curdistão simultaneamente me pegou desprevenido e suscitou algumas reflexões tanto sobre as condições da [r]existência curda quanto sobre a situação do curdo enquanto imigrante. Ser curdo é constantemente lidar com o que eles acusam de tentativas de assimilação: é como se a identidade curda tivesse de estar constantemente em alerta para continuar existindo. Frente a isso, a recusa em aprender o idioma do país anfitrião vira uma forma ativa de dissimilation, pegando emprestado o conceito de Scott (2009). Este processo é ativo na formação da identidade curda dentro da Turquia, como uma identidade que se desenvolve de forma diametralmente oposta à do estado-nação turco, desenvolvendo valores morais e políticos antagônicos.
Além do mais, a recusa ativa do “gostar daqui” e o reforço da ideia de que “eu vim para trabalhar” indica a presença do “pecado da ausência” (Sayad 1998), que tenta ser amenizado através do trabalho duro e de uma insatisfação ativa com o país hospedeiro. Amed era também um grande adepto de Tiktok, e, enquanto fumava constantemente seus cigarros, me mostrava fotos de grafites pró-curdos que havia feito e suas participações em manifestações e no movimento de solidariedade da diáspora curda. Quando perguntamos sobre a briga que havíamos presenciado mais cedo no dia, um orgulho envergonhado surgia nos rapazes, que repetiam o quanto era negativo ceder a provocações e brigar na rua, mas tentavam conter a excitação ao descrever um ou outro golpe bem efetuado no adversário. Aqueles turcos eram também jovens imigrantes trabalhadores, e não seria estranho se trabalhassem nas mesmas indústrias que os nossos anfitriões. Eles também devem sofrer com seus próprios pecados da ausência e trabalham de seu próprio modo com a sua dissimilation, replicando as dinâmicas de opressão de sua terra natal no país de imigração.
Afetuoso, Amed ofereceu a sua própria cama para que o nosso companheiro Aymará dormisse, enquanto ele mesmo dormiria no chão. Fomos descansar, e, apesar das diversas xícaras de chá, não foi difícil dormir, devido ao cansaço do dia. Ainda teríamos um longo caminho até Estrasburgo.
Fábio Rafael Augusto (ICS-UL, ISCSP-UL)
Preâmbulo: um breve enquadramento
A exclusão social está intimamente relacionada com processos de (re)produção de preconceitos (Liamputtong e Rice 2021). Durante o meu doutoramento em Sociologia, contactei de forma próxima com esta relação. Ao analisar três iniciativas de apoio alimentar a atuarem em Portugal – organização de redistribuição de alimentos, cantina social e mercearia social – e os seus atores – responsáveis, voluntários e beneficiários – compreendi melhor o peso que certas palavras podem ter tanto no atenuar como no acentuar de dinâmicas de exclusão. “Iniciativas de apoio alimentar”, ou simplesmente “Iniciativas”, dizem respeito às várias organizações que compõem o universo da ajuda alimentar, oferecendo apoio como doação de bens alimentares e fornecimento de refeições quentes a populações vulneráveis. Geralmente, resultam de esforços de membros da sociedade civil e assentam em trabalho voluntário. Os destinatários tendem a ser intitulados de “beneficiários”. Assumindo o papel de “voluntário etnógrafo”, conforme descrito por Garthwaite (2016), foi possível identificar nos três contextos organizacionais momentos de tensão e conflito. Estes episódios tinham na sua base, por um lado, um profundo desconhecimento do outro e, por outro lado, a reprodução de tipificações baseadas num reduzido número de características negativas.
O ambiente
Cheguei tarde, cansado e molhado à Iniciativa, o que, por consequência, esgotou a minha paciência. No curto percurso de cinco minutos que tive de percorrer a pé, a chuva teve a audácia de me encharcar. Sentia que tinha atravessado um rio e acabado de emergir na outra margem. Já na organização de redistribuição de alimentos, apercebo-me de que o ambiente era pesado e cinzento. Os beneficiários, tal como eu, estavam também eles cansados, molhados e com pouca paciência. Não existindo um local de acolhimento apropriado, com elementos-chave como um resguardo, cadeiras e aquecimento, as horas percorridas à espera de alimentos são dolorosas. O desconforto era, particularmente, visível na expressão de José e dee Idália (nomes fictícios). Talvez o facto de serem beneficiários mais velhos e com um longo período de contacto com a Iniciativa justifique o seu desencanto. Ouço suspiros e frases murmuradas: “nunca mais se despacham, estou fartinho de aqui estar”. As críticas ao atendimento multiplicam-se com o avançar do tempo de espera.
Entre água e preconceito
Enquanto realizo a primeira tarefa do dia – recolher os nomes dos beneficiários para agilizar o atendimento –, ouço um diálogo perturbador entre dois voluntários no interior da Iniciativa. À semelhança da chuva, também estavam a cair preconceitos. O jovem voluntário João virou-se para o mais experiente António e questionou: “já viste quem chegou?”. Após um breve silêncio, o João prossegue: “outra vez aquele gajo gordo e chato pá! Estou fartinho dele, só quer levar o que lhe interessa. Se levasse coisas mais saudáveis estava mais magrinho e escusava de me chatear a cabeça”. Esta fala interrompeu o meu raciocínio, levando-me a pedir ao beneficiário que tinha acabado de abordar para repetir o seu nome – ainda agora não me recordo qual é. Pensei imediatamente no problema que aquele discurso iria causar.
O dia já estava a ser duro e agora juntava-se uma frase com um grande potencial destrutivo, quer pelo teor da mensagem quer por ser audível para vários dos beneficiários que se encontravam mais próximos da porta. O pior aconteceu e os meus receios não se mostraram infundados. O beneficiário Antunes verbaliza o seu desagrado: “já não basta uma pessoa ter de vir aqui e ainda é maltratada. Que falta de noção!”. Este estímulo é amplamente aceite pelos seus pares que acenam com a cabeça em sinal de concordância. O caldo estava entornado e as dezenas de beneficiários à porta da organização começam a fazer-se ouvir. Entre as frases de protesto, consigo escutar com clareza: “estes acham que são deuses, têm de sair do pedestal e descer à terra”; “o problema é que nunca tiveram de passar por dificuldades”; e “são mesmo arrogantes, frios e distantes”.
Inicialmente, os voluntários optaram por ignorar o sucedido, possivelmente acreditando que a situação se iria resolver por si só. Contudo, a revolta ganha novos contornos e não demoram a chegar frases e gestos ofensivos. O voluntário Marco, já com cabelos grisalhos, chega junto dos contestatários e grita: “o dia não está a ser fácil para ninguém, mas se todos tivermos calma daqui a nada estão todos atendidos”. Por se tratar de um voluntário respeitado, visível pelo silêncio que se fez sentir para o escutar, conseguiu acalmar os ânimos. Manifestamente irritado, Marco desloca-se para o interior da Iniciativa e sem se dirigir a ninguém em concreto, menciona: “temos de ter muito cuidado com aquilo que dizemos aqui. O que acabou de acontecer era completamente escusado”. Apesar de parecer querer acrescentar algo, apenas abanou a cabeça em sinal de desagrado e dirigiu-se para a bancada da cozinha. O silêncio tomou conta do espaço, sendo apenas interrompido com frases curtas relativas ao serviço prestado.
Espelho meu
Situações idênticas a esta foram presenciadas e relatadas em diário inúmeras vezes, partindo de diferentes atores, circunstâncias e impulsos. O preconceito integra o universo da ajuda alimentar e desloca-se nele de forma fluída. À semelhança de um espelho de distorção, como aqueles que encontramos no circo e nos mostram uma versão deformada e caricaturada de nós próprios, também o preconceito distorce a nossa perceção do outro. As iniciativas de apoio alimentar constituem, em diversos momentos, salões de espelhos distorcidos que não nos permitem ver a verdadeira essência do outro, reduzindo-o a algo grotesco e deformado. Estes espelhos não só alimentam perceções negativas, como também fornecem as bases para a (re)produção de dinâmicas de exclusão, afastando os atores, simultaneamente, de uma cidadania ativa e participada e do estabelecimento e reforço de laços sociais que dão sentido e significado ao nosso mundo social.
Joana Vidal Maia (ISCTE, NOVA-FCSH, CRIA)
Duas mulheres brasileiras vivem em Lisboa e, em suas relações com homens, usam contraceção. Até aqui parece tudo simples…
“Fui, belíssima, numa farmácia, e simplesmente pedi por um anticoncepcional”. Clarissa (esse nome, assim como todos os que aparecem no texto são fictícios) tem 31 anos, se identifica como bissexual, branca, tem escolaridade de mestrado e vive com a companheira, também brasileira. Na época deste episódio estava solteira, ficava de vez em quando com um rapaz e queria garantir que não ficasse grávida. Decidiu então tomar a pílula. Seguiu o caminho que já conhecia do Brasil, onde sempre comprou anticoncepcionais e camisinhas na farmácia. Mas em Lisboa foi diferente. Clarissa conta que foi mal atendida, se sentiu “julgada, como eu não me sentia no Brasil”, simplesmente por ter pedido a pílula; aliás, “duplamente julgada, porque eu não tinha uma receita”. O farmacêutico lhe deu uma bronca:
“Eu só fiquei: ‘Gente, eu não ‘tou entendendo qual é esse problema’ […] Ele viu que eu era brasileira, ele não se preocupou em me explicar: ‘Olha, eu não sei como é que é no Brasil’, simplesmente dizer: ‘aqui em Portugal, p’ra ter anticoncepcional tem que ir no ginecologista, marque no seu centro de saúde’.”
Nossa conversa aconteceu no primeiro domingo do ano. Inverno, sensação de geladeira. Naquele dia vesti todos os casacos e a encontrei num café nos Anjos com mais duas amigas. Formalmente, chamamos isso de “grupo focal”; na prática, comemos e bebemos e falamos até o lugar encerrar. No encontro, Clarissa refletia sobre a relação entre migração e práticas contracetivas. Ela contou que foi a primeira vez que pensou sobre o quanto a necessidade de receita médica para comprar pílula, algo pouco usual no Brasil, dificulta o acesso à prevenção. Depois daquela experiência na farmácia, ainda tentou marcar uma consulta no centro de saúde, mas a disponibilidade era para dali a seis meses.
“Nunca tomei. Desisti. Eu não tinha plano de saúde na época, falei: ‘Não vou num médico privado só para pedir anticoncecional’. Aí foda-se, vou comprar camisinha. Aí cheguei para comprar camisinha: caro que só a porra. Pedi para trazerem do Brasil.”
Ester não estava nesta conversa. Nossos encontros são de outros circuitos. Falamos numa manhã do mesmo inverno por videochamada, as duas de pijama, como ela comentou quando me viu. Vive na Área Metropolitana de Lisboa com o marido – um homem português, é estudante de doutoramento, tem 32 anos, e se identifica como branca e heterossexual. Na casa onde Ester cresceu, religião é importante e a família participa ativamente de uma igreja evangélica tradicional. Esse contexto fez com que não tivesse encontros sexuais no Brasil. Suas experiências com contraceção aconteceram em Lisboa, após iniciar a vida sexual em parceria. Entretanto, o conhecimento que tinha sobre isso vinha de antes, de uma aula no ensino médio (em Portugal, chamado secundário). Primeiro, Ester escolheu o preservativo — a opção “mais fácil”; considerava o dispositivo intrauterino (DIU) “muito invasivo”, e não queria pílula:
“Ainda tinha aquela questão mais religiosa na cabeça, de se eu tomar, meu corpo vai mudar e vai todo mundo saber que eu ‘tou fazendo sexo.”
Após o casamento, decidiu seguir sem contracetivo oral, agora por questões relacionadas a outras condições de saúde. O DIU de cobre se tornou uma opção. Foi atrás:
“Eles não me colocam aqui em Portugal, porque falam que eu não tive filhos e só pode colocar o DIU quem tem filhos.”
Duas médicas disseram o mesmo, tanto no centro de saúde público, como numa ginecologista privada.
“Eu falei: ‘Tá bom, eu ‘tou perguntando porque no Brasil colocam’, né? Ela: ‘Ah, no Brasil, aqui não’.”
Desse jeito, para ela, o preservativo seguiu como a opção eleita.
A literatura aponta que entre contraceção e vida tem um match particular em constante rearranjo, que envolve diversos elementos: relações entre parcerias afetivas e/ou sexuais e com outros sujeitos, como pais, amigos e outras redes; conhecimento; momento da vida; capacidades materiais; disponibilidade dos serviços; crenças religiosas, legislação; protocolos médicos; assim como os “tênues direitos” – algo que seria legalmente garantido, mas na prática não funciona bem assim (Brandão 2020). Neste sentido, penso que circulam múltiplas semânticas sobre exclusão nas narrativas: capacidade de interditar; supressão de informação; autoridade para construir juízos de valor sobre o outro; constrangimento; critério de decisão entre possibilidades. O fato de tratar-se de experiências migrantes adiciona outra camada de associações a esses significados a partir da mobilidade: o trânsito torna conhecimento em desconhecimento; os recursos têm outro valor, outros critérios, outros acessos; mas também afasta constrangimentos anteriores.
Parece-me interessante pensar que essa pode ser uma interpretação possível do encontro entre agência como forma de intenção/desejo, e agência como forma de poder nas dinâmicas do “jogo sério” (Ortner 2007) da reprodução social no contexto de capitalismo de um país ocidental sul-europeu. O acesso a contracetivos, que supostamente estaria disponível para um match ideal sem barreiras simbólicas ou materiais, se mostra “tênue”, especialmente matizado pela migração. A contraceção também transita: entre a preferida e a possível, pontos de tensão e caminhos surgem em meio as intenções das mulheres, o poder dos profissionais de saúde e a verdade da medicina (Foucault 2021). A possibilidade de sexo não-reprodutivo é materializada no preservativo talvez justamente pela informalidade do acesso – e eventualmente isso seria uma analogia ao próprio lugar social desse sexo.
Madalena Patriarca (ICS-UL)
Encontro Fernando habitualmente na associação de doentes bipolares. Aprendeu aí que os medicamentos controlam a doença, permitem-lhe ter uma vida normal. Mas agora descemos a avenida que liga o Instituto de Ciências Sociais ao Campo Grande, em Lisboa. Libertos dos constrangimentos da associação, peço-lhe que me fale da sua medicação. Como a inclui ele nessa normalidade?
Fernando, porém, em momento algum me fala dela.
Revisito amiúde a imagem do seu corpo idoso, franzino e oscilante, a girar sobre si próprio, ameaçando cair. E a da minha mão que se inclina, que se detém antes de completar o gesto que o amparará. Como bipolar, Fernando reentra na normalidade por meio da medicação. Mas ela marca-o com a visibilidade do desequilíbrio, devolve-lhe a exclusão. Decido não o incluir num anonimato-abrigo. Devolver-lhe o nome será talvez uma forma mais justa de lhe devolver a possibilidade de ele excluir a medicação da nossa conversa. E incluir-nos numa experiência que a ambos comoveu.
Chicago, as rosas, Carnide
Fernando diz-me que os prédios envidraçados lhe lembram a cidade de Chicago. Escuto-o, acompanho-o no vaivém da memória. Entramos num hotel barato onde acontecem pedaços da sua vida como porteiro noturno. Encontramo-nos, eu e ele, algures num espaço intermédio por onde se passeiam homossexuais, chulos, mulheres vistosas, clientes de casino, bebidas, elegância, dólares, música de orquestra. O Fernando diligente, profissional, de luvas brancas, cede ao Fernando acossado pelos colegas na copa, invejosos do seu brio. Parece ao Fernando diante de mim injusta e cruel essa inveja. Apesar de tudo, foi uma boa vida, garante.
Concentro-me nas grossas lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto, na voz embargada, na expressão sofrida. Sigo por onde me conduzem neste crafting. Fernando abandona a esposa para correr atrás de Chicago. Transfiguro-me eu na depositária das suas confissões. Mil vezes se arrepende. Troca Chicago pela esposa, também a perde. Chora-a. A memória trata de desfazer a ordem das sequências cronológicas. Regressamos ao bairro lisboeta de Carnide, onde agora mora e ocupa os dias com os casos jurídicos que tem para analisar. Perplexidade minha, logo desfeita quando uma outra imagem se impõe: no jardim da sua moradia, Fernando chora convulsivamente, rodeado do vermelho das suas rosas enquanto cuida delas.
O ruído do trânsito situa-nos num ali orgânico. Dou-me conta de que as lágrimas dissolvem fronteiras, permitindo que partilhemos um mundo comum, humano. Comovo-me com as possibilidades cromáticas: vermelho-rosa sobre o antracite-vidro dos prédios. As lágrimas de Fernando caiem como uma chuva. Mancham a sua camisa azul, impecavelmente engomada sob o fato de corte executivo.
Comovo-me com Fernando. Mais tarde, desenho no diário de campo um skyline que me ajuda a pensar neste encontro, a voltar a ele. Tento descortinar, no espaço-mapa da etnografia, os skylines da híbrida Lisboa-Vermelho-Chicago que Fernando me deu a visitar, incluindo-me na sua vida ao mesmo tempo que me confessava a sua exclusão de uma vida como a que antigamente tinha. As lágrimas dissolvem as fronteiras dessa exclusão, fundem as perceções (racionalizadas) do tempo e do espaço. Como teria sido indelicada se lhe tivesse oferecido um lenço para as secar. Ou se a minha mão tivesse completado o gesto que o impediria de cair. Ou se tivéssemos simplesmente permanecido ambos sentados na associação a falar da sua medicação diária.
Figura 1 – Desenhar é conhecer: notas do diário de campo para pensar o meu encontro com Fernando e Maia.
Barragens, rupturas, fluídos (des)orgânicos
No diário de campo penso em Maia, no seu corpo deformado pela medicação. Para se descrever como bipolar estável, foram precisos mais de 8 anos, três psiquiatras e um sem número de ajustes para chegar à medicação certa. Paradoxalmente, a medicação mimifica a doença, causa-lhe mania. Ela brinca: o meu corpo tem duas doenças: a bipolar e a bipolar da medicação. É de loucos! Ri-se.
Mas o corpo é um fardo. Os medicamentos laxaram os músculos do pavimento pélvico. Não sustêm as fezes. Mapear a localização de casas de banho na cidade tornou-se uma obsessão. E se não chegar a tempo? Sai cada vez menos de casa. Define-se como uma excluída que se pós-autoexclui. A normalidade dos outros – faz o gesto das aspas com os dedos – cospe-a para a periferia. O corpo cede finalmente às tensões quando me diz: “Ainda não consegui terminar a minha tese de mestrado no Técnico sobre as forças de sustentação das barragens”.
Para fora transbordam os fluídos que excluímos do olhar público: as diarreias persistentes, a incontinência, as lágrimas. Estou sempre a transpirar. As palmas das mãos, abertas, estão estendidas na minha direção, viradas para mim, suadas. Podia ler-lhe a sina. O verniz verde, belíssimo, das unhas fica excluído do meu olhar, mas lembro-me dele. Apetecia-me dizer-lhe que eram de um verde-belíssimo. Mas… e se as palavras se tornam obscenas? Silencio-me, e com isso também a excluo. Comovo-me quando penso nela. Resgato-a um pouco, então. Talvez. Ainda penso que, de algum modo, a protejo no anonimato que lhe imponho. Mas não sei se ela apreciaria.
No meu desenho, reforço as forças subterrâneas que suportam a baixa da cidade. Desenhei-as à medida que pensava no meu encontro com Fernando e depois com Maia. Por que me pareceu que fazia sentido desenhar assim o meu encontro com eles? O desenho coloca-me perguntas a que talvez não consiga responder.
Gianmarco Marzola é antropólogo, operador social e humanitário. Nos últimos anos, tem investigado nas áreas de política, religião e migração, trabalhando na Europa e no Médio Oriente. Atualmente, desenvolve um projeto de doutoramento no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa sobre estratégias autónomas de mobilidade adotadas por migrantes menos privilegiados na Europa. E-mail: gianmarco.marzola@gmail.com
João Afonso Baptista é etnógrafo e antropólogo, investigador auxiliar no ICS-ULisboa. Nos últimos anos, tem aprofundado questões sociais relacionadas com a água, tanto ao nível do oceano e do mar quanto das circulações de água no interior de Portugal. Tem publicado o seu trabalho em vários formatos, incluindo o livro The Good Holiday ( 2017), os artigos “Bodyland” (American Ethnologist, 2022) e “Edible Zombis” (JRAI, 2022), além do filme Abissal (2021). E-mail: joao.baptista@ics.ulisboa.pt
Kátia Favilla, Doutoranda em Antropologia no ICS-ULisboa, Mestre em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais e Bacharel em Antropologia ambos pela UnB. Trabalhos desenvolvidos no governo federal brasileiro, em organismos internacionais e em organizações da sociedade civil em estreita parceria com povos e comunidades tradicionais. Os temas de pesquisa são povos e comunidades tradicionais, terra e território, reflorestação, ressurgências florestais. CV completo em https://www.cienciavitae.pt//pt/9A1D-6AE1-9413
Juliana Ardenghi é nutricionista, atualmente é estudante no doutoramento em Ciências da Sustentabilidade na Universidade de Lisboa, Portugal. Desenvolve seu projeto em duas áreas: antropologia e ambiente. E-mail: jardenghi@gmail.com
Carolina Ribeiro Araujo é ecóloga, especializada em questões sociais, se aventura no universo antropológico, buscando refletir sobre a interação das culturas originárias e ocidental, em face das conveniências e contradições em ser humano e natureza.
Daniel Oliveira é doutorando em Ambiente e Sustentabilidade na NOVA e investigador no Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (MARE). Geógrafo, o autor foca-se em integrar o conhecimento espacial local no processo investigativo através da exploração de métodos etnográficos e geográficos visuais. E-mail: danielgeo13@gmail.com
Luísa Coutinho é investigadora de pós-doutoramento do Projecto Ruy Cinnati: etnógrafo e poeta, do IELT, NOVA FCSH. Tutora de Antropologia da Licenciatura em Ciências Sociais da Universidade Aberta. É doutorada em Antropologia pelo ICS-ULisboa. Interesses: Antropologia, História, dinâmicas e relações de poder, parentesco, migrações, memória, narrativas, Timor-Leste, Congo.
Duygu Cihanger Ribeiro é urbanista e professora no Departamento de Planeamento Urbano e Regional na Middle East Technical University (METU), em Ancara, Turquia. A sua investigação e ensino concentram-se na intersecção entre o urbanismo, desenho urbano e a sociologia urbana, com ênfase especial no espaço público e na vida quotidiana. Durante o seu período como investigadora visitante no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e no seu pós-doutoramento (financiado pela TUBITAK), na Universidade de Aveiro, ela liderou um projeto sobre multiculturalismo, espaço público e os "migrantscapes" de Lisboa. Este projeto explorou a relação dinâmica entre o ambiente construído e as estruturas sociais, destacando como os espaços públicos moldam e refletem a diversidade cultural.
Leonor Rosas é doutoranda em Antropologia no ICS-UL. Trabalha as interseções entre memória, espaço público e colonialismo, particularmente nas cidades de Lisboa e de Bruxelas.
Maria Concetta Lo Bosco é investigadora no ICS-ULisboa. A sua investigação atual "Neurodiversidade no local de trabalho: uma etnografia sobre políticas de emprego inclusivas (PEIs) e cidadania" tem como objetivo explorar as políticas de emprego inclusivas para pessoas neurodivergentes e como as reivindicações de inclusão e cidadania envolvem noções de competência e autossuficiência. Tem publicado artigos sobre autismo, neurodiversidade e advocacia, práticas de cuidados e gênero, trabalho de campo e emoções.
José Vicente Mertz é doutorando em Antropologia pela Universidade de Lisboa, graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisa desde 2016 o processo insurgente curdo e o Confederalismo Democrático, buscando desenvolver uma pesquisa na área da antropologia das insurgências e das autonomias.
Fábio Rafael Augusto, sociólogo, é investigador no ICS-ULisboa e docente no ISCSP-ULisboa. As suas áreas de interesse incidem sobre questões relacionadas com a alimentação, incluindo ajuda alimentar, desigualdade e pobreza.
Joana Vidal Maia é estudante do Doutoramento em Antropologia ISCTE-IUL/NOVA-FCSH e doutoranda integrada no CRIA. Este texto integra dados do projeto de tese “Contraceção e poder: controlo da reprodução como experiência multidimensional de relações sociais”, com financiamento pela FCT e pelo FSE através da bolsa de doutoramento UI/BD/151002/2021 e do CRIA UI/04038/2020; DOI financiamento: 10.54499/UI/BD/151002/2021.
Madalena Patriarca é doutoranda no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Pesquisa o quotidiano de pessoas bipolares e as suas estratégias de adaptação, reinvenção e fuga ao modelo biomédico.
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[1] O site do GI pode ser consultado através do link: https://ics-antropologia.pt/