Field notes consist of original texts that provide a look and reflection on research experiences with the presentation of fieldwork vignettes. Authors are invited to incorporate multimodal representations (text, sound and image in the most varied formats) that facilitate access to facts, materialities, involvements, interactions, relationships and interactions made possible during fieldwork. A section that opens the door to the ways in which anthropologists produce knowledge when they carry out their research, valuing raw data, materials to be analysed, impressions and inaccuracies, circumstantiality and the gerundial nature of doing anthropology and which invites creative solutions that make us enter or approach the experiences lived by anthropologists in the field.
In this piece, Raquel Pereira revisits her fieldwork experience in Goa, India, where she spent time between November 2016 and April 2018, particularly with the Pagi. A reflection that invites us to experience strangeness and in which she talks about body(ies), clothing(s) and what means to be a woman there.

Fig. 1 – “O vestido!”. Retrato da investigadora capturado pelo seu marido durante o trabalho de campo. Fotografia digital editada no Adobe Photoshop pela investigadora.
Na tentativa de me distanciar dos corpos desnudados dos turistas e integrar-me, decidi encomendar alguns vestidos à Arna, a costureira da aldeia. Ainda assim, ao longo de toda a pesquisa, o meu corpo e o modo como era tapado ou destapado continuaram a ser objeto de observação, não só pelos habitantes das aldeias, mas também pelos turistas. Os últimos, por andar “demasiado” vestida, chegando a ouvir comentários como: “Não leves a mal, mas os portugueses são muito conservadores, não são?”. Ri, muitas vezes, por conta destas observações.
Entre os corpos cobertos dos meus interlocutores e os desnudados dos turistas (e a imensa vontade de me juntar aos segundos), estava ciente de que adotar a indumentária turística não seria o mais conveniente para a pesquisa. A menção à “white flesh” feita por um interlocutor católico
[1], poucos dias após ter aterrado na aldeia, serviu de aviso – para bom entendedor, meia palavra basta. Adotar o vestuário das mulheres Pagi, por sua vez, significaria não sobreviver às difíceis condições atmosféricas que se faziam sentir durante a maior parte do ano. Assim, decidi criar um estilo próprio. Esta decisão, no entanto, não foi tomada sem uma certa negociação, recordando-me para sempre das palavras das mulheres quando lhes expliquei o que pretendia, especialmente no que se referia ao tamanho das mangas e à maior ou menor exposição dos meus ombros. Por oposição ao conjunto de
kurta-calça/
leggings de algodão grosso, que me chegou a ser proposto, ou à
nighty, longa demais, insisti nos vestidos, convencida que eles permitiriam uma maior circulação de ar, tornando mais toleráveis as altas temperaturas e índices de humidade desesperantes (ou assim esperava...). Finalmente, lá encomendei os ditos vestidos!
Contudo, como noutros momentos, esqueci-me de que na aldeia tudo decorre sem “tension”, conforme o Uja me lembrava (muitas vezes!). Os dois ou três dias rapidamente se transformaram num mês de espera. Findo este período, as inúmeras tentativas para marcar um encontro lá surtiram efeito e, finalmente, a Arna, acompanhada das miúdas da Shi e do Uja, conseguiu visitar-me. “É hoje! Vou ter os meus vestidos!”, pensei eu! Porém, não foi bem isso que aconteceu…
A minha encomenda deixou a Arna radiante – mais uma cliente para a sua lista! E eu, por vários motivos, também estava muito feliz. Gostava da Arna, era uma pessoa muito simpática e empática. E, portanto, o estabelecimento de um contacto mais próximo não demorou. Como costureira da aldeia, ela vendia e fazia roupa para todos os habitantes. Para além da roupa, a loja da Arna, era um verdadeiro paraíso de bijuterias. No entanto, ela insistiu que as provas dos primeiros vestidos deveriam acontecer na minha casa. Tentei mudar a visita para a loja, para acelerar o processo, mas nem tudo era negociável.
Com uma hora de atraso e já no final da tarde, lá apareceu a Arna. Apesar do meu entusiasmo, este seria de curta duração. Os problemas não tardaram: o vestido era um tamanho abaixo do meu (embora ela me tivesse tirado as medidas) e o modelo significativamente diferente do que tinha pedido, apesar de todas as minhas tentativas de negociação. A situação não tardou a transformar-se numa risada incontrolável: o meu peito mal cabia no vestido e, daí para baixo, o tecido criava um balão gigante que chegava às canelas. Percebi de imediato que deveria ter respeitado os ritmos locais, em vez de insistir (mas o desespero estava a tomar conta de mim!). Tornou-se óbvio que a Arna ainda não tinha colocado mãos à obra, e, portanto, sem nada para me apresentar, recorreu a um plano de última hora na tentativa de não me desapontar.
Lá voltei a mostrar o que pretendia: um modelo simples e direito, com um corte e medidas que não desagradasse totalmente a ninguém, e que me servisse, ou seja, largo, mas não tanto, para que o ar circulasse, mas a minha pessoa não se perdesse no meio da coisa. Os altos índices de temperatura e humidade detestam roupa apertada. Estávamos naquela época do ano em que transpirávamos à lá torneira, sem que qualquer líquido ingerido ou existente no nosso corpo resistisse. Quase nos podíamos transformar numa espécie de máquina a vapor, só não deitávamos fumo porque o suor não condensava; era possível, com o calor que se fazia sentir! O certo é que escorria suor intensamente pelos nossos corpos. As alergias, provocadas por essa transpiração, eram comuns, como se pode imaginar. Dada a calamidade da situação, a Arna tirou-me novamente as medidas. Além disso, insisti que levasse um vestido meu consigo, para garantir a precisão das dimensões de cada recanto da minha pessoa.
Quem lê isto até pode pensar que ela era uma má costureira. Não, de todo! Simplesmente, não me quis desapontar. Certo, é que nos fartámos de rir! Eu, a Arna, as miúdas e o meu marido, que foi várias vezes expulso de casa. Todos confinados numa casa com metade do telhado em zinco, que transformava a pequena habitação num forno, sem ventoinha e comigo a morrer de calor e quase a afogar-me em suor, numa contínua dança de veste e despe, despe e veste! A risada foi muito divertida, mas não me ajudava e só atrasava o raio da prova. O único momento de alívio acontecia quando elas permitiam a entrada do meu marido para ele dar a sua opinião, antes de expulsá-lo novamente. Ele, bastante surpreendido, ainda chegou a dizer-lhes: “Mas, eu sou o marido… (como quem diz, não há nada que eu já não tenha visto!)”. A observação não surtiu qualquer efeito e a resposta foi prontamente lançada: “És o marido, mas isto é a Índia”! Para mim, porém, a entrada e saída constante do meu marido trazia algum alívio – sempre fazia correr algum ar naquela casa.
Foi assim o dia!
***

Fig. 2 – “Pescador Pagi a levantar uma rede”. Imagem capturada pela investigadora. Fotografia digital.
A indumentária dos Pagi passou por transformações nas últimas décadas. Nos anos de 1990, no dia-a-dia, ainda era comum os homens usarem apenas uma tanga branca, enrolada em si mesma, cobrindo toda a cintura, ou presa por um fio, tapando apenas os órgãos genitais. Nas idas à cidade e noutras ocasiões mais formais, a opção recaía por um conjunto composto de uma camisa e um pano atado à cintura. Hoje, no quotidiano, os homens usam calções e calças com t-shirts de manga curta ou camisas coloridas. Nos casamentos, se os noivos continuam a vestir os trajes tradicionais, os convidados homens optam cada vez mais pelo fato completo (blazer, calça, camisa e gravata) ou calça e camisa, em vez do típico conjunto kurta-pyjama. Este último é composto de uma túnica comprida, calças ajustadas à cintura e tornozelo, mas largas ao longo da perna, e um lenço caído sobre os ombros. A indumentária deve ser acompanhada de mojaris (calçado tradicional). Nos eventos rituais, se os homens assumirem alguma função ritualista, trajam também vestuário para o efeito.
O traje dos Pagi não se distingue do vestuário utilizado por outros grupos hindus de Goa, ou seja, não existe um elemento único que os diferencie neste aspeto. Por seu turno, os homens católicos, que também residem nas aldeias onde realizei a pesquisa, tal como os hindus, no dia-a-dia, usam igualmente calções ou calças com t-shirt ou camisa e, em ocasiões especiais, optam pelo fato completo
[2].

Fig. 3 – “Mulheres Pagi: indumentária”. Fotomontagem produzida pela investigadora no Adobe Photoshop, com desenhos a carvão, digitais e imagens fotográficas da sua autoria.
Contrariamente aos seus pares masculinos, tanto as mulheres Pagi como as católicas, nas aldeias onde realizei a pesquisa, vestem-se de acordo com a sua afiliação religiosa. Assim, no quotidiano, as primeiras tendem a usar uma túnica de algodão, tipo vestido, comprida e de manga curta, que designam de
nighty ou um conjunto composto de uma túnica aberta dos lados (
kurta), que se estende até à linha do joelho ou abaixo, e calças largas ajustadas na cintura e tornozelo; embora o uso de
leggings seja também muito comum. Para as idas à cidade e ocasiões especiais, como casamentos e cerimónias religiosas, elas optam pelos seus melhores trajes
que incluem o
sari de seda. Todavia, em determinadas cerimónias rituais, as mulheres Pagi adotam também o
sari de algodão utilizado pelos grupos tribais
[3], que é disposto e atado de modo distinto ao corpo, deixando a zona dos gémeos exposta. O tipo de vestuário e adereços, que incluem uma multiplicidade de itens (um número determinado de pulseiras, diferentes tipos de colares (e.g., o
mangalsutra e outros ricamente ornamentados e preferencialmente em ouro), anéis para mãos, pés e nariz, pulseiras de tornozelo, flores e outros enfeites para o cabelo, entre outros), cumprem não só funções específicas, como atuam enquanto marcadores de distinção entre mulheres casadas, solteiras e viúvas. Já as mulheres católicas, no dia-a-dia, optam pelo uso de um conjunto de t-shirt ou camisa, combinadas com uma saia abaixo do joelho, ou por vestidos casuais de manga curta. Para ocasiões especiais, a escolha recai tendencialmente sobre o uso de vestidos de cerimónia.
***
Apesar das inerentes dificuldades à entrada em qualquer terreno, não demorei a ser aceite. Numa das aldeias onde realizei a pesquisa, fui convidada para um casamento ao fim de um mês. Quando questionei as mulheres Pagi sobre o que devia trajar, a resposta foi uníssona: sari! “E o meu marido? Ele não trouxe um fato.”, repliquei. “Kurta-pyjama”, respondeu Shi. “Compras em Chaudi. (…) O sari, não te preocupes. Nós temos tudo para ti!”. Assim foi.
Fui vestida com o sari da esposa do Uja, que me emprestou também o seu estimado fio de ouro, oferecido pelo marido, e os seus brincos do mesmo metal precioso, símbolo auspicioso e de prosperidade. O mangalsutra, colar com missangas pretas, símbolo de mulher casada, e as pulseiras comprei-os à Arna. Foi todo um processo que envolveu também muito veste e despe, e momentos de desespero, porque não é fácil vestir e usar um sari num dia de temperaturas extremamente elevadas. O sari é composto de um pedaço de tecido de vários metros de comprimento que é enrolado à volta do corpo, o que requer bastante habilidade. Por baixo, veste-se um top de manga curta (choli) e um saiote que serve para prender o tecido. O resultado foi um sucesso. Semanas depois, na aldeia e noutras adjacentes, ainda havia quem elogiasse a nossa indumentária: “Vocês estavam muito bem!”, diziam-nos. “O mérito foi todo das mulheres Pagi!”, retorquíamos diante dos elogios.

Fig. 4 – “O casamento”. Retrato fotográfico da investigadora e do seu marido capturado por uma interlocutora Pagi. Fotomontagem e edição de imagem com recurso a mesa gráfica efetuada pela investigadora no Adobe Photoshop.
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O fazer antropológico implica negociações e sacrifícios, mas devemos deixar de ser quem realmente somos? Negociar a minha identidade num lugar com dinâmicas de género tão distintas foi um verdadeiro desafio. Foi preciso, uma elevada dose de bom senso e muita observação, para perceber os meus e os limites do outro. A presença do meu marido, permitiu rapidamente que uma identidade clara fosse produzida sobre mim. Eu era uma mulher casada. Contudo, a minha necessidade de manter certos aspetos da minha individualidade levou à construção de uma espécie de identidade híbrida sobre mim, por assim dizer.
Se no casamento adotei a indumentária mais tradicional, no dia-a-dia, as coisas eram diferentes. Não me comportava ou vestia como os turistas, ou até mesmo como uma estudante europeia, e também não cedi por completo ao vestuário das mulheres Pagi: troquei a túnica (kurta) de manga curta e apertada no peito, e as leggings de algodão grosso, por vestidos acima do joelho, incluindo alguns de alças. Além do vestuário, eu era uma mulher casada, mas apenas pelo civil, e não usava aliança. Era eu quem conduzia o carro. Era eu quem estudava os pescadores, não o meu marido, que simplesmente me acompanhava. Era eu quem não tinha religião e o afirmava abertamente: não era hindu, como alguns estrangeiros, muçulmana, nem sequer católica. No plano doméstico, se era eu quem lavava a roupa, o meu marido é que a estendia, e não era eu quem varria o pátio (tarefa indiscutivelmente feminina), mas sim ele: um equilíbrio de género na distribuição das tarefas domésticas que não passou despercebido.
Em muitos aspetos, não agia de maneira diferente dos homens Pagi, os meus interlocutores privilegiados, o que resultou numa certa masculinização da minha pessoa. Porém, aos olhos deles e delas, nunca perdi também a minha feminilidade. Manter-me fiel, tanto quanto possível, à minha pessoa, não só me aproximou dos homens, dando-me acesso a espaços reservados a eles, como das mulheres que, frequentemente, ansiosas por mudança, me confidenciavam as suas considerações sobre a vida marital ou o papel da mulher em geral. Assim, se não demorei a ouvir delas, “Tens um bom marido!”, ele não tardou a ouvir deles, “A tua mulher é forte. Algumas são assim, como os homens. Isso é bom!”. A alcunha que caracterizava a ambiguidade da minha pessoa também não tardou a chegar: “Hello! Lady fishermen!”.
Raquel Maria Mendes Pereira é doutorada em Antropologia: Políticas e Imagens da Cultura e Museologia (ISCTE-IUL e NOVA FCSH), mestre em Antropologia: Globalização, Migração e Multiculturalismo (ISCTE-IUL) e licenciada em Antropologia (ISCTE-IUL). É investigadora integrada do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA-NOVA FCSH/IN2PAST) e do Grupo de Investigação, Desafios Ambientais, Sustentabilidade e Etnografia (DASE). No decorrer da sua pesquisa de doutoramento, que abordou a realidade complexa e conflituosa das áreas protegidas, realizou um trabalho de campo de longa duração (18 meses) no sul de Goa, na Índia, com um grupo de pescadores artesanais – os Pagi.