Artigos
Vinícius Venancio
Os rumores, boatos e fofocas são parte constitutiva das sociedades e possuem um papel fundamental na coerção, controle e disciplinarização dos indivíduos em prol da coesão social. Eles tendem a emergir em momentos de tensões sociais e
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Jaime Santos Júnior, Marilda Aparecida de Menezes
Em 2020, um ano após a realização de uma pesquisa que teve como objetivo principal analisar, comparativamente, os ciclos de greves de canavieiros, em Pernambuco, e de metalúrgicos de São Paulo e do ABC Paulista, que ocorreram em fins da década
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Raquel Afonso
O quadro legal que serve de base à perseguição da homossexualidade em Portugal e no Estado espanhol surge antes do início das ditaduras ibéricas. Em Portugal, por exemplo, a I República cria legislação contra “os que praticam vícios
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Ana Gretel Thomasz, Luciana Boroccioni
Este artículo entrecruza las problemáticas del habitar y el derecho a la vivienda con la de la construcción de ciudadanía, a las que explora desde una perspectiva antropológica. Retoma el trabajo etnográfico desarrollado entre 2015 y 2020 con
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Deborah Daich
En junio de 2020 fue lanzado, desde el Ministerio de Desarrollo argentino, el Registro Nacional de la Economía Popular (ReNaTEP) que, entre otras categorías, incluyó las de trabajadora sexual y stripper. Las organizaciones de trabajadoras
[+]Recursividad
Cristina Santinho, Dora Rebelo
O artigo surge a partir de uma investigação baseada em etnografia: observação participante, recolha de histórias de vida, entrevistas e testemunhos de refugiados e migrantes, residentes em Portugal. Centramo-nos numa experiência particular de
[+]El libro y sus críticos
Victor Hugo de Souza Barreto
Parte do nosso compromisso no trabalho etnográfico é o de reconhecer nossos interlocutores como sujeitos de desejo. Mesmo que esses desejos, escolhas e vontades não sejam aqueles entendidos por nós, pesquisadores, como “bons”, “melhores”
[+]El libro y sus críticos
Paulo Victor Leite Lopes
A partir de um investimento etnográfico denso, o livro Minoritarian Liberalism: A Travesti Life in the Brazilian Favela, de Moisés Lino e Silva, traz interessantes reflexões a respeito dos limites ao (suposto) caráter universal e inequívoco em
[+]Dossiê "Neoliberalism, universities, and Anthropology around the world"
Virginia R. Dominguez, Mariano D. Perelman
The idea for this dossier began with a conversation over one of those long breakfasts given at conferences. It was 2014 and the blows of the 2008 economic crisis were still being felt strongly. There was growing concern in the academic field over
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Mwenda Ntarangwi
At a time when it is critical to understand humanity and its various forms of socioeconomic and political life, anthropology and other social sciences are being threatened by a neoliberal emphasis on “relevant” courses in universities in Kenya.
[+]Dossiê "Neoliberalism, universities, and Anthropology around the world"
Bonnie Urciuoli
A discipline’s value depends on the institutional position of its valuers. In U.S. liberal arts undergraduate education, trustees, marketers, and parents routinely link disciplinary value to “return on investment”. This market logic is evident
[+]Dossiê "Neoliberalism, universities, and Anthropology around the world"
Alicia Reigada
Neoliberal reforms arising from Spain’s entrance into the European Higher Education Area (EHEA) have had major consequences for academic practice and unleashed heated debate in the university community and society. This article explores the main
[+]Dossiê "Neoliberalism, universities, and Anthropology around the world"
Luis Reygadas
This article analyzes how the working conditions for Mexican anthropologists have deteriorated throughout the last few decades. Until half a century ago, only a few dozen professional anthropologists practiced in Mexico, and most of them had access
[+]Dossiê "Neoliberalism, universities, and Anthropology around the world"
Gordon Mathews
There are global neoliberal pressures on the academy that are more or less faced by anthropologists around the world. To what extent are anthropologists required to publish in English in SSCI-ranked journals to keep their jobs and get promoted? But
[+]Reseñas
João Pina-Cabral
This is a truly innovative ethnography about writing; a worthy anthropological response to Derrida’s deconstruction of the notion. It centers on the encounter between two marginal creators: a brilliant geometrician from Africa, and a seasoned
[+]Artigos
Diogo Henrique Novo Rocha
Fazer antropologia na boca do urso, sem descrições densas ou contextos teóricos, apenas numa dialética simples entre tensões do mundo ocidental “capitalista” e as cosmologias animistas do Norte. Uma pretensão que leva a antropóloga
[+]Editorial
Humberto Martins
A Etnográfica celebra os 50 anos do 25 de Abril de 1974. Não podia deixar de ser. Abril abriu, em Portugal e no Mundo, muitas portas para as Ciências Sociais. Áreas de saber vistas como perigosas e ameaçadoras do statu quo de regimes opressores
[+]Editorial
Sónia Vespeira de Almeida, João Leal e Emília Margarida Marques
Este número da Etnográfica, comemorativo dos 50 anos do 25 de Abril, procura associar a comunidade dos antropólogos – professores, investigadores, profissionais da antropologia, antigos estudantes ou atuais estudantes – à evocação das
[+]Etnografias da revolução em revista
José Cutileiro
Quando na Primavera de 1970 acabei de escrever A Portuguese Rural Society, estava convencido de que a fase de história económica e social do Alentejo iniciada no segundo quartel do século XIX teria ainda longos anos à sua frente e que as
[+]Etnografias da revolução em revista
Sandra McAdam Clark e Brian Juan O’Neill
This paper1 has two main purposes: (a) to present some preliminary results from S. McAdam Clark’s recent research on the agrarian reform and related developments in Southern Portugal, and (b) to set forth a critique of José Cutileiro’s specific
[+]Etnografias da revolução em revista
Caroline B. Brettell
In October of 1973, the newly organized International Conference Group on Modern Portugal, spearheaded by Douglas Wheeler (historian), Joyce Riegelhaupt (anthropologist) and others, held its first meeting on the campus of the University of New
[+]Imagens do país em 1974-1976: ensaio de antropologia visual
Clara Saraiva
A “equipa maravilha” da antropologia portuguesa do século XX formou-se em torno da figura de António Jorge Dias, que completou na Universidade de Munique, em 1944, um doutoramento em Etnologia, com a tese Vilarinho da Furna, Um Povo
[+]Antropologia e revolução: do ISCSPU ao ISCSP (1974-1976)
João Leal
No dia 27 de abril de 1974 – dois dias depois do 25 de Abril – caiu o “U” de ISCSPU (Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina), renomeado no mesmo dia ISCSP (Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas).
[+]Antropologia e revolução: do ISCSPU ao ISCSP (1974-1976)
Filipe Ramires
O clima repressivo que perpassava pela Academia de Lisboa nos anos anteriores ao 25 de Abril de 1974 também se fazia sentir no então ISCSPU. O controlo político-repressivo efectuado pela direcção da escola, nomeadamente através de certos
[+]Antropologia e revolução: do ISCSPU ao ISCSP (1974-1976)
Luís Souta
Entrei na universidade em 1970, depois de ter realizado, em finais de Outubro, o “exame de admissão”, escrito e oral – Língua e Literatura Portuguesa e Geografia Geral, segundo as “matérias estabelecidas no programa oficial do 7.º ano
[+]Antropologia e revolução: do ISCSPU ao ISCSP (1974-1976)
Dulcinea Gil
Terminado o liceu (ensino secundário) da alínea B, no Liceu Nacional de Faro, fui para Lisboa, a fim de frequentar o curso de Filologia Germânica da Faculdade Letras da Universidade de Lisboa.1 Fiquei desiludida com o curso quando percebi que, ao
[+]Antropologia e revolução: do ISCSPU ao ISCSP (1974-1976)
Maria da Luz Alexandrino
Em Lisboa sentia-se electricidade no ar – estava tudo de nervos em franja. Informações sussurradas nos cafés e nas esquinas sobre movimentos de militares, especialmente de capitães democráticos; sobre a tentativa de golpe de Março nas Caldas
[+]Antropologia e revolução: do ISCSPU ao ISCSP (1974-1976)
José Fialho Feliciano
Em 25 de Abril de 1974 estudava em várias universidades de Paris, modeladas, de formas diferentes, pelos ventos de mudança de Maio de 1968. Em Jussieu (Paris VII – Faculté des Sciences) fizera o bacharelato (DEUG) em Ciências da Sociedade,
[+]Antropologia e revolução: do ISCSPU ao ISCSP (1974-1976)
José Cardim
Foi em 1960 que, estando eu em Angola e interno numa escola no Sul do país, sucedeu no Norte a primeira “insurreição moderna” nas colónias portuguesas. Tinha antes vivido e estudado em Lisboa, em Luanda, Lourenço Marques e… no
[+]Antropologia e revolução: do ISCSPU ao ISCSP (1974-1976)
José Neves
Para aquele lisboeta que descobriu que já não tinha creme de barbear em casa, o dia 25 de abril de 1974 começou mal. Ainda assim, o homem saiu à rua e foi aí e então que se inteirou do que estaria a acontecer na cidade: uma revolução. Os
[+]Etnografias da revolução, hoje
Sónia Vespeira de Almeida
Este artigo interroga as práticas artísticas na revolução no quadro das Campanhas de Dinamização Cultural e Acção Cívica do MFA (1974-1975). Parte da revisitação de um corpus de dados recolhidos no âmbito de uma investigação publicada
[+]Etnografias da revolução em revista
Elsa Peralta e Bruno Góis
Com o fim do império colonial, na sequência da Revolução do 25 de Abril de 1974, as fronteiras e a identidade da nação portuguesa são redefinidas. Neste contexto, foram repatriados das ex-colónias para Portugal cerca de meio milhão de
[+]Etnografias da revolução, hoje
Inês Ponte
Ao lidar com as convulsões políticas do passado de Angola, a obra literária mais tardia do antropólogo Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010), angolano de origem portuguesa, proporciona refletir sobre a revolução dos cravos em Portugal. Não é
[+]Etnografias da revolução, hoje
Pedro Gabriel Silva
Na sequência da revolução de 25 de Abril de 1974, uma aldeia do concelho de Belmonte foi palco, durante seis anos, de um conflito que opôs um grupo de proprietários minifundiários e parte da comunidade a uma empresa mineira. Neste artigo,
[+]Etnografias da revolução, hoje
Cristina Pratas Cruzeiro, Ricardo Campos e Cláudia Madeira
Neste artigo pretendemos revisitar um dos palcos privilegiados para a expressão dos cidadãos – a rua e o espaço público urbano – a partir do legado das pichagens e murais realizados durante o período revolucionário do 25 de Abril de 1974
[+]O que gostarias de ter estudado em 1974?
Nuno Domingos
O presente é uma condição inevitável da produção de uma investigação que responda ao desafio da Etnográfica: escrever um ensaio acerca do que gostaria de pesquisar se tivesse tido a oportunidade de acompanhar in loco a revolução de 25 de
[+]O que gostarias de ter estudado em 1974?
Ruy Llera Blanes
É já um lugar-comum afirmar o papel fulcral que o 25 de Abril de 1974 teve no processo de descolonização das colónias portuguesas em África, nomeadamente no que diz respeito à incorporação da descolonização como desígnio do programa do
[+]O que gostarias de ter estudado em 1974?
Patrícia Alves de Matos
Se pudesse escolher uma temática de investigação sobre o período revolucionário português, qual seria? Foi este o desafio que os editores me colocaram. Inicialmente pensei em velhas ideias que tinha tido quando terminei a minha licenciatura em
[+]O que gostarias de ter estudado em 1974?
Marta Prista
Avril au Portugal. Pela mão do Comissariado de Turismo, o Estado Novo promoveu a viagem a Portugal recebendo os estrangeiros no dia do turista com flores, souvenirs e sorrisos de jovens trajadas à imagem do país que se queria.2 Em 1974, uns dias
[+]O que gostarias de ter estudado em 1974?
Constança Arouca
A caminho da exposição do Mário Cesariny, no MAAT, e já com a capa da celebração dos 50 anos do 25 de Abril em mente, pela primeira vez estive a observar com atenção a intervenção dos 48 artistas, na reinterpretação de 2022 do mural do
[+]Miguel, no seu quarto, atormentado pelo frio parisiense de Março, encontra-se sozinho perante as desgraças que a sociedade contemporânea reserva aos jovens e angustiado por uma doença que a medicina tradicional não está a conseguir curar. Enredado na sua dor, com a memória atravessa as frias paredes brancas do seu quarto. Reencontra-se criança nos braços da sua avó, Dona Maria, acariciado pelo suave sol primaveril da costa alentejana e ouvindo o doce bater das ondas do mar.
Enquanto se agarra às suas memórias de infância, Miguel redesenha o quarto da sua avó. Vê-se nos lençóis brancos da grande cama de madeira, em frente ao roupeiro cuja porta central tinha um espelho. Depois da última porta deste roupeiro, lembra-se vivamente de uma pequena mesa-redonda, bem integrada na mobília, mas cuidadosamente distinguida nas palavras da avó.
Esta pequena mesa torna-se cada vez mais definida nas memórias de Miguel. A mesa levava uma grande toalha branca e cor-de-rosa que abrigava uma multidão de estatuetas votivas e várias fotografias. Em frente a estes grupos de estatuetas que com os olhos cuidavam os quatro cantos da sala, havia velas e um copo que sempre levava água. Se a água e o fogo delimitavam o espaço à frente, atrás as estatuetas eram abraçadas por flores.
Miguel recorda que nas longas tardes de verão passadas a olhar para estas estatuetas, a sua avó dizia: "São lindas meu filho, não é? Elas ajudam-nos; quando tiveres um problema pede-lhes ajuda. Elas estarão ao teu lado, juntas ao bom Deus...".
"Aí, vida! Nunca precisei tanto de ajuda como hoje!", Miguel pensava no seu quarto de Paris, a quilómetros e anos de distância do pequeno altar doméstico.
Estas estatuetas de santos, santas e Nossa Senhora, eram uma companhia excecional no quotidiano e portadoras de ajuda prodigiosa nas crises mais adversas. Miguel recorda as doces palavras e os pedidos que a sua avó reservava a estas estatuetas, abraçadas com um amor e um carinho parecidos com os que a mulher reservava aos seus netos.
Entre estas estatuetas, protegidas, estavam as fotografias de família. Na estatueta preferida de Miguel, a fotografia do avô encontrava conforto. Era a estátua de um homem vestido de preto, com um velho traje de professor com botões dourados. Tinha um porte orgulhoso e um olhar acolhedor, um grande bigode e os cabelos eram pretos e encaracolados. "Dr. Sousa Martins!", exclamou Miguel com alegria no seu quarto, como quando se encontra um velho amigo.
Miguel lembrou-se da noite em que a fotografia do seu avô foi colocada aos pés da estatueta do Dr. Sousa Martins. Foi uma noite de verão mais frenética que as outras. Dona Maria chegou tarde da cidade e quando ela chegou a casa disse: "Miguel, fica calminho hoje. A Dona Aurora vem cá fazer um trabalho para ajudar o teu avô”. Desde o acidente no barco de pesca que a ferida na perna do avô não sarava, apesar das frequentes idas ao hospital.
No início da noite, chegou Dona Aurora, uma mulher magra e com cabelos brancos, e foi ver o avô no quarto. Quando ela entrou, Miguel saiu; mas a criança escondeu-se atrás da porta do quarto e começou a olhar pela fechadura.
A mulher sentou-se ao lado da cama onde o avô estava deitado. Trazia um terço nas mãos e depois de repetir várias vezes o sinal da cruz, fechou os olhos e levantou a cabeça para o céu. Após alguns minutos intermináveis, a mulher baixou lentamente a cabeça e começou a falar sempre com os olhos fechados: "Boa noite, filho, então o que tem esta perna?"
A voz que pronunciou estas palavras, que ainda ressoa nos ouvidos de Miguel, não era a voz delicada da idosa mulher, mas uma voz masculina, forte e segura, rouca de tabaco.
A Dona Maria respondeu, numa voz quase embargada pelas lágrimas: "Oh Meu Doutor! Oh meu Amigo! Oh meu irmão! Que honra o ter aqui, chamamos-lhe porque o meu marido..." e a avó contou do incidente daquela noite no barco e da ferida do seu marido. “Naquele momento quem atendia e cuidava do avô já não era mais Dona Aurora, mas Sousa Martins!”, como explicou a Dona Maria ao seu neto mais tarde.
Após cerca de trinta minutos de massagens, usos de ervas e pomadas, e orações, tudo visto pelo pequeno Miguel maravilhado, Dona Aurora, ou bem, o Espírito do Doutor através o corpo da mulher, abençoa a casa e os presentes.
Depois alguns segundos de silencio, Dona Aurora reabriu os olhos e agora com voz calma e doce de mulher exclamou sorrindo: “Então como foi? Já está melhor esta perna? Como estava o nosso Santinho? Ele teve de ir ver os outros doentes.”
A Dona Maria, sorrido e com olhar lúcido, explicou a Dona Aurora o que o Doutor tinha prescrito. Saindo do quarto Dona Aurora falou com Dona Maria, e disse-lhe para colocar a foto do marido ao lado da estátua do Doutor, e deu-lhe também uma imagem do Doutor que levava uma oração, que o avô deveria recitar, e depois guardar o papelinho na carteira: "Para que o Doutor estivesse sempre ao seu lado" - conclui Dona Aurora.
Miguel lembra-se bem que, depois dessa noite, o avô, pouco a pouco, foi recuperando a saúde.
Devido a estas memórias de infância, a vontade de busca pessoal de paz e a necessidade de uma ajuda sobrenatural, Miguel sente a exigência de rever o rosto do Doutor Sousa Martins para provar e vivenciar a presença dele na espera de encontrar sossego. “Mas como vivenciar a presença do Doutor? Como pedir um reconforto, uma luz, tão longe do quarto da minha avó, de Portugal e sem nenhum guia?”.
Levado pela curiosidade e a necessidade de descobrir mais sobre esta figura que acompanhou os seus avós, Miguel faz o que atualmente costuma ser a normalidade para começar uma pesquisa: escreve o nome do médico num motor de busca digital. Assim, descobre que Sousa Martins foi um grande médico e investigador português do século XIX e foi, também, um grande filantropo. Depois da morte, foi reconhecido como entidade sobrenatural, graças à fé do povo e longe de qualquer instituição. Dessa forma, surge uma devoção que ainda hoje se mantém viva. Seguindo as sugestões do motor de busca digital, Miguel encontra também uma página no Facebook: Doutor Sousa Martins Escolhido por Deus.
“Como é que uma lembrança do passado se pode encontrar atualizada numa página de Facebook? Como é que uma entidade antiga pode expressar a sua -presença- no Facebook? Como é que a pesquisa de espiritualidade se pode resolver no mundo digital que parece quase inconciliável com o mundo do além?”, pensou Miguel. Curioso por um lado e cético por outro, fez um pedido de inscrição. Já na primeira página de aceso ao grupo, foi informado sobre algumas regras, descrições e finalidades desta página dedicada à devoção ao Dr. Sousa Martins.“Estas regras parecem construir uma distinção deste espaço e o resto do mundo digital e sublinham que é dedicado a encontrar, pedir e agradecer a Sousa Martins o qual atua pela vontade de Deus”, analisava Miguel. A especialização, trazida por estas fronteiras desenhadas com palavras, deixou Miguel mais seguro "parece que estou a entrar num espaço fechado e protegido... vamos lá, vamos começar esta insólita e curiosa visita", pensou Miguel sorrindo.
Na noite de 6 de Março, Miguel foi aceite no grupo e no dia seguinte faz a sua primeira visita a este espaço digital de espiritualidade. A sua atenção é imediatamente atraída para um vídeo publicado nesse mesmo dia. Com este vídeo, ele encontra-se no cemitério de Alhandra, uma vila nas margens do Tejo, perto de Lisboa.
No início do vídeo feito com telemóvel, vêm-se muitas pessoas em fila, em silêncio, recolhidas em orações. Esperam para poder entrar num jazigo. Pela pequena porta verde entram duas pessoas de cada vez. Após alguns minutos elas saem. Olhando bem, sobre o mármore branco, na direita da entrada do jazigo, há uma escritura em tons dourados: “José Thomas de Sousa Martins, 7 Março 1843 – 18 de agosto 1897.”
Miguel pensou; “É aqui que Ele está! E hoje, dia 7 de Março, é o dia da comemoração da sua partida, hoje é a sua romaria...e eu posso ver isso à distância!” Assim, Miguel entrou no cemitério mesmo estando longe. A grande fila de devotos à espera de entrar deixou-o com a impressão de que “Sousa Martins continua a ouvir quem precisa dele.”
Nesse dia, muitos membros do grupo colocaram fotos das visitas ao jazigo ou da praça em Lisboa onde há uma grande estátua do Doutor sobre um mar de flores e ex-votos.
Além destas imagens e vídeos que parecem provas de fé e possibilidades de difusão desta devoção, destacam-se na página do grupo, as imagens do Doutor e os pedidos de ajuda que as pessoas partilham. “Parece que o Doutor Sousa Martins até no mundo digital nos ouve!”, pensava Miguel.
“Mas como é que esse mundo digital, do efémero, dos frios objetos tecnológicos, pode acolher a luz e a espiritualidade?”, indagava Miguel. O romantismo das suas ideias de espiritualidade parecia inconciliável com uma devoção no digital. Mas, a necessidade da ajuda sobrenatural, a distância física e temporal dos espaços da devoção em Portugal e do altar da sua avó, tornaram este (tão contemporâneo) formato de devoção uma possibilidade aceitável e compreensível.
Lendo as palavras dos pedidos de milagre feitos neste grupo Facebook, parece que “em caso de necessidade, até uma página de Facebook pode virar um espaço propício ao religioso; até uma página de Facebook pode ajudar ao encontro com uma entidade. Tal encontro, ao final, é vivido sempre na intimidade dos sentidos...na intimidade das nossas almas”, pensou Miguel. Nestas mensagens digitais publicadas no grupo, muitas pessoas escrevem diretamente ao Doutor agradecendo-lhe ou pedindo-lhe uma ajuda, um guia nas dificuldades da vida cá em baixo, no sofrimento e nas angústias que a vida pode, às vezes, reservar. Em fim, estes pedidos de ajuda sobrenatural deixaram Miguel com a sensação que "O Doutor parece estar aqui, presente, à nossa escuta...”
Miguel quer experimentar enviar um pedido de milagre ao grupo, mas, divido na sua timidez, antes de tudo ele vai escrever uma mensagem privada à administradora do grupo, uma tal de Dona Minda. Nesta mensagem, pede licença para poder publicar e também conselhos sobre: “Como é que fazemos os pedidos? Como é que podemos falar com Ele, aqui no Facebook?” Conclui o pequeno texto agradecendo os vídeos do dia da romaria, que lhe permitiram estar mais perto dos lugares físicos da devoção.
Dona Minda, com carinho, respondeu: "Falamos com ele como se ele estivesse à nossa frente, porque ele está lá, ele ouve-nos! Tudo se pode pedir ao nosso santinho. Já houve pessoas que me contactaram e me perguntaram como fazer, como pedir, e às vezes pediram-me para eu pedir por elas... Eu faço, sabes, eu penso muito nele e no pedido... e depois escrevo...é preciso ter Fé!". Ao ler estas palavras e pensando no empenho da Dona Minda e na sua dedicação aos outros membros do grupo, Miguel, senti confiança na mulher que se apresentava como um guia, uma figura de orientação e de ajuda.
A curiosidade no jovem foi crescendo e outras perguntas, entre o ceticismo e a vontade de compreender a – presença - do Doutor, se impuseram. Assim, Miguel pensou que “Com os conhecimentos e a proximidade com o Espírito do Doutor, a Dona Minda talvez tenha as respostas”, e a conversa entre os dois continuou. Esta curiosidade cresceu em Miguel porque este grupo Facebook caracterizado pela procura do milagre presenta-se, por um lado, como um caminho de reconciliação com as suas memórias e, por outro, como um possível início de alívio dos seus sofrimentos, através do aproximar-se ao Doutor Sousa Martins.
Tal como quando era criança e o seu avô precisou da ajuda do médico milagreiro, as imagens votivas acompanham os pedidos das pessoas neste espaço digital. A representação de Sousa Martins é, muitas vezes, a mesma que o avô de Miguel tinha na sua carteira. “Como esquecer a imagem daquele homem de bigode sentado à secretária, com olhar atento, e com o ar de quem está a ouvir, que acompanhava sempre o avô?” pensava Miguel, mergulhando nas suas memórias de infância. Além disso, estas imagens digitais que fluem sob os olhos de Miguel, representam também o Doutor ao lado de outros santos, como estava na mesinha da avó, ou com flores, ou no céu. Afinal, no coração de Miguel, são mesmo estas memórias de infância que valorizam e dão um sentido ao entrar numa forma de devoção tão contemporânea, para encontrar um sossego.
Muitas destas imagens digitais são criadas por Dona Minda, a quem, Miguel, cheio de curiosidade perguntou “Como é que se criam estas imagens votivas digitais?”. Dona Minda explicou, "Sabes... à noite há qualquer coisa que me acorda, não sei o quê...mas já não durmo... quando assim é, fico inspirada e escrevo orações e poemas ou entro na aplicação e faço as imagens para o nosso Irmão (Sousa Martins) ...é quase como se não fosse eu… só tenho a intenção e a vontade de agradecer ao Doutor...".
Longe de ser uma figura do “Além” que tudo julga, Miguel olhava para o Espírito do Doutor como uma possibilidade de acolhimento, uma oportunidade de ser abraçado com carinho, uma carícia na cabeça, uma “Luz” na escuridão que muitas vezes invadia os seus pensamentos mais íntimos. As imagens votivas, como as escrituras, tornam-se assim veículos de transformação da vida de quem acredita, veículos para aproximar-se do Doutor Sousa Martins.
Dona Minda explica ao Miguel: "Criei este grupo há muitos anos. Mas já conhecia Sousa Martins muito antes. Ele salvou a minha filha de uma doença grave. Já ninguém a podia ajudar, mas eu ia todos os dias ver o Sousa Martins, à sua estátua e ele salvou-a. Até o médico me disse que foi um milagre! Depois disso sempre tive fé, sempre falei com ele. Só depois fiz este grupo... é uma forma de agradecer... de divulgar o seu poder... de ajudar as pessoas...".
Nestas palavras da Dona Minda, que tão rapidamente tornou-se uma figura de confiança, a ação de criação do grupo, a sua gestão e conteúdos, são atos de agradecimento a Sousa Martins. “E se agradecemos tanto é porque Ele faz?!”, repetia Miguel para si próprio nos seus pensamentos que passavam de céticos a esperançosos.
Depois desta conversa, da visita digital ao jazigo, do envolvimento no grupo de Dona Minda e dos outros devotos, Miguel sentiu que este espaço da contemporaneidade é de facto um espaço de acolhimento e escuta, de quem procura o milagre. Este grupo de Facebook também é, para Miguel, um espaço de acolhimento das suas memórias. Através esta viagem no mundo digital das imagens, das práticas, das formas de ressentir a entidade parece ao Miguel até mais claro como uma entidade antiga pode expressar a sua -presença- no Facebook.
Miguel, depois de se recolher em si mesmo, iniciou a escritura do seu pedido de milagre ao Doutor, e transmitiu o pedido ao grupo. Aguardando, no coração dele, o dia 18 do mês de Agosto, para ir a Alhandra, e participar, desta vez em pessoa, na romaria do dia de nascimento de Sousa Martins. Anseia, assim, pela ocasião de poder agradecer e pedir ajuda a esta entidade sobrenatural que une o seu passado ao seu presente.
Vincenzo Scamardella (Aix-Marseille Université (IDEAS)
Vincenzo Scamardella é doutorando na Universidade de Aix-Marseille. Sua pesquisa concentra-se na antropologia da religião, antropologia visual e antropologia do digital. O seu trabalho atual centra-se numa etnografia do culto ao Doutor Sousa Martins em Portugal, estudando as circulações e interconexões entre espaços devocionais online e offline. Um interesse particular é direcionado para as práticas devocionais contemporâneas deste culto, incluindo o estudo da mediunidade.
Bibliografia
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CAMPEBELL, Heidi A. e Ruth TSURIA, (orgs.), 2022, Digital religion. Understanding Religious Practice in Digital Media. New York: Taylor & Francis.
FAVARET-SAADA, Jeanne, 1977, Les mots, la mort, les sorts. Paris : Gallimard.
GIUMBELLE, Émerson, João RICKLI e Rodrigo TONIOL (orgs.), 2019, Como as coisas importam. Uma abordagem material da religião. Textos de Brigit Mayer. Porto Alegre: Editora da UFRGS.
LUHRMANN, Tanya, 2022, Le feu de la présence. Aviver les expériences de l’invisible. Bruxelles : Vues de l’esprit.
PEREIRA, Pedro, 2021, O outro lado da rua. Viana do Castelo: Centro de Estudo Regionais.
PONS, Christophe, 2002, Le Spectre et le voyant. Paris : Presses de l’université de Paris-Sorbonne.
PUSSETTI, Chiara, Humberto MARTINS e Paulo MENDES (orgs.), 2023, Exercícios de antropologia narrativa. Lisboa : Edições Colibri.